" MENSAGEM DO DIA "
MENSAGENS e POESIAS

JUNHO de 2006


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01/Junho/2006:

“ DEPOIS DE VIVER ”
- Pequenas Histórias de Amor Verdadeiro - CD 2005 -

“ Ninguém apaga assim um amor,
Ninguém maltrata assim uma flor.
Eu trago no peito essa culpa, essa dor,
De onde vem, essa coisa que me faz ferir
Quem quero bem?

A gente colhe o que semeou.
A gente encontra o que procurou.
Eu ando correndo atrás de quem sou,
Afinal, to cansado de querer o bem
E fazer o mal.

A vida ensina, é preciso parar pra aprender,
Se ela agora me trouxe você,
É a hora da gente entender, por quê ?

O amor que se pinta com a tinta da desilusão,
É amor ou seria paixão,
Olhe dentro do seu coração pra compreender...

O amor não tá pronto e, no entanto,
Eu devia saber,
É momento de reconhecer:

Só se ama depois de viver...
Depois de viver ! ”

( Plínio Oliveira - 'O Poeta Cantor' - 1969/**** )

02/Junho/2006:

“ MUDO E QUEDO ”
- Cachoeira de Paulo Afonso - 1870 -

“ E calado ficou... De pranto as bagas
Pelo moreno rosto deslizaram,
qual da braúna, que o machado fere,
Lágrimas saltam de um sabor amargo.
Mudos, quedos os dois neste momento
Mergulhavam no dédalo d’angústia,
No labirinto escuro que desgraça...
Labirinto sem luz, sem ar, sem fio...
Que dor, que drama torvo de agonias
Não vai naquelas almas!... Dor sombria
De ver quebrado aquele amor tão santo,
De lembrar que o passado está passado...,

Que a esperança morreu, que surge a morte!...
Tanta ilusão!... tanta carícia meiga!...
Tanto castelo de ventura feito
À beira do riacho, ou na campanha!...
Tanto êxtase inocente de amorosos!...
Tanto beijo na porta da choupana,
Quando a lua invejosa no infinito
Com uma bênção de luz sagrava os noivos!...
Não mais! não mais! O raio, quando esgalha
O ipê secular, atira ao longe
Flores, que há pouco se beijavam n’hástea,
Que unidas nascem, juntas viver pensam,
E que jamais na terra hão de encontrar-se!

Passou-se muito tempo... Rio abaixo
A canoa corria ao tom das vagas.
De repente ele ergueu-se hirto, severo,
— O olhar em fogo, o riso convulsivo —
Em golfadas lançando a voz do peito!...
“Maria! — diz-me tudo... Fala! fala
Enquanto eu posso ouvir... Criança, escuta!
Não vês o rio?... é negro!... é um leito fundo...
A correnteza, estrepitando, arrasta
Uma palmeira, quanto mais um homem!...
Pois bem! Do seio túrgido do abismo
Há de romper a maldição do morto;
Depois o meu cadáver negro, lívido,
Irá seguindo a esteira da canoa
Pedir-te inda que fales, desgraçada,
Que ao morto digas o que ao vivo ocultas!...”
Era tremenda aquela dor selvagem,
Que rebentava enfim, partindo os diques
Na fúria desmedida!...

Em meio às ondas
Ia Lucas rolar
Um grito fraco,
Uma trêmula mão susteve o escravo...
E a pálida criança, desvairada,
Aos pés caiu-lhe a desfazer-se em pranto.
Ela encostou-se ao peito do selvagem
— Como a violeta, as faces escondendo
Sob a chuva noturna dos cabelos — !
Lenta e sombria após contou destarte
A treda história desse tredo crime!... ”

( Castro Alves - 'Biografia' - 1847/1871 )

05/Junho/2006:

“ ROMANCE SONÂMBULO ”
- À Glória Giner e a Fernando de los Rios -

“ Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.

Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
nascem com o peixe de sombra
que rasga o caminho da alva.
A figueira raspa o vento
a lixá-lo com as ramas,
e o monte, gato selvagem,
eriça as piteiras ásperas.

Mas quem virá? E por onde?...
Ela fica na varanda,
verde carne, tranças verdes,
ela sonha na água amarga.
— Compadre, dou meu cavalo
em troca de sua casa,
o arreio por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde as passagens de Cabra.
— Se pudesse, meu mocinho,
esse negócio eu fechava.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Compadre, quero morrer
com decência, em minha cama.
De ferro, se for possível,
e com lençóis de cambraia.
Não vês que enorme ferida
vai de meu peito à garganta?
— Trezentas rosas morenas
traz tua camisa branca.
Ressuma teu sangue e cheira
em redor de tua faixa.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Que eu possa subir ao menos
até às altas varandas.
Que eu possa subir! que o possa
até às verdes varandas.
As balaustradas da lua
por onde retumba a água.

Já sobem os dois compadres
até às altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam pelos telhados
pequenos faróis de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.

Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O vasto vento deixava
na boca um gosto esquisito
de menta, fel e alfavaca.
— Que é dela, compadre, dize-me
que é de tua filha amarga?
— Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
rosto fresco, negras tranças,
aqui na verde varanda!

Sobre a face da cisterna
balançava-se a gitana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Ponta gelada de lua
sustenta-a por cima da água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Lá fora, à porta, golpeando,
guardas-civis na cachaça.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar.
E o cavalo na montanha. ”

( Federico Garcia Lorca - 'Biografia' - 1898/1936 )

06/Junho/2006:

“ CIÊNCIA ÍNFIMA”
- Parnaso de Além Túmulo - 1932 -

“ Onde o grande caminho soberano
Da Ciência que abriu a nova era,
Investigando a entranha da monera,
A desvendar-se no capricho insano?

Ciência que se elevou à estratosfera
E devassou os fundos do oceano,
Fomentando o princípio desumano
Da ambição onde a força prolifera...

Ciência de ostentação, arma de efeito,
Longe da Luz, da Paz e do Direito,
Num caminho infeliz, sombrio e inverso;

Sob o alarme guerreiro, formidando,
Eis que a Terra te acusa, soluçando,
Como a Grande Mendiga do Universo !... ”

Antero de Quental: nascido na ilha de São Miguel, nos Açores, em 1842, e desencarnado por suicídio, em 1891. É vulto eminente e destacada nas letras portuguesas, caracterizando-se pelo seu espírito filosófico.

( Antero de Quental / Chico Xavier - 'Biografia' - 1842/1891 )

07/Junho/2006:

“ FANATISMO ”
- Livro de Soror Saudade - 1923 -

“Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver !
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida !

Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida !

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim !

E, olhos postos em ti, digo de rastros :
"Ah ! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..." ”

( Florbela Espanca - 'Biografia' - 1894/1930 )

08/Junho/2006:

“ ANTÍFONA ”
- I - Parte Primeira -
... nem que o galo cante.

De que lado mora a luz
e onde residem as trevas?
(Livro de Jó, 38:19)

Venho de outras terras, meu capitão,
não sou da beira do mar, eu venho
desd’onde uma bola de fogo,
volúpia de luz, volúpia de cor,
cavalgava o horizonte e desabava,
queda brusca por detrás da serrania,
era quase todas as tardes,
lá,
que raramente chovia.

Na quebrada do sol
os jatobás queriam se apossar do ouro do crepúsculo,
pediam a mestre Vento para lhes açoitar as copas,
ajuda para agarrarem o Sol,
mas o Sol,
com medo de se perder na mata,
corria ligeiro, mais ligeiro ainda,
o medo de se rasgar nos galhos dos paus,
para enganá-los,
ficava maior na hora de se esconder,
como quem dissesse
"sou muito maior do que o maior dos oitis",
e desabava lá de cima, soberano:
pulfo!
Bem ligeiro,
talvez até fosse mesmo — muito maior — bem ligeiro,
rápido, rápido despencava lá detrás,
e a penumbra deslizava sobre a planície,
desciam as trevas no lá-de-cá da serra,

[faltam quatro dedos
para o Sol s'esconder na pedra grande,
dizíamos, no jogo de bola,
vamoss'embora]

que em porta e ferrolho:
noite!

Depois me mudei:
fui para além dos cabeços da Serra Branca,
para além do lado de lá,
atravessei o crepúsculo,
debandei para onde o sol aparecia,
acheguei-me às faldas da aurora,
Macacos, rio Macacos e Volta-do-Rio,
fazenda Macacos,
Macaco-da-dona-Anísia, diziam os moleques
para insultar, macaco de minha mãe;
era de lá mesmo, Macaco-de-minha-mãe,
do outro lado da serra,
a vez de espiar o mesmo Sol,
albor das alboradas.

Ali,
no lad’e lá do crepúsculo,
rompia desta vez,
o sol, a uma maré cinzenta,
brigava contra aqueles mesmos paus,
aqueles mesmo morros
que eram da tarde quand’era de tarde,
agora, matina, o Sol digladiava os mesmos inimigos;
os mesmos paus,
os mesmos morros eram engabelados,
o mesmo engodo:
crescer na hora de passar por cima deles, bola de fogo,
apenas um fogo mais brando,
talvez fosse o frio do vento frio da serra fria,
daquela manhã quase fria, soprando,
que logo depois esquentava,
soprando.

Para não rasgar nas pedras, pontiagudas, agudas,
para não derramar o oiro aos jatobás:

quem já abriu um jatobá,
bem amarelinho por dentro, sabe,
é puro ouro,
das asas,
borboletas —
pó, amarelas elas também.

Os jatobás passavam o dia inteiro dourando Sol,
mesmo assim, queriam mais,
sempre mais ouro do Sol,
mas o bicho-sol crescia,
alargava o passo, andava ligeiro.

Depois,
mal se livrava dos jatobás e do mais alto dos oitis,
diminuía o passo, ganhava altura
até o pingo,
pingo-do-meio-dia:

e pingávamos,
afrouxávamos o barbicacho dos chapéus,
cabeças abaixadas,
reverentes,
pois ninguém jamais olhou o rei Sol a pingo:

Só enquanto ele nasce,
só enquanto ele some;
quanto menor o Sol,
mais brilho de sol;
quanto mais alto o Sol,
mais fogo de Sol!

A pino, diziam os mais velhos:
nunca olhe,
pode cair em cima da gente.

Mestre Sol,
quando estava a pino
chamava por mestre Vento e ordenava:

Compadre Vento, não vente,
vamos mormacear,
botar os bichos pra sombra,
é hora de encostar.

Encostava rápido e não ventava,
e mal descambava da linha do pingo,
mestre Sol afrouxava as correias de mestre Vento:
rápido era o redemoinho,
rápida era a poeira,
rápida secava a infanta baginha do feijoeiro,
rápidas contorciam-se as pontas dos dedos dos matos verdes,
rápidas murchavam as cabeças louras das filhas do milharal,
rápida e aflita a sede geral de todos os bichos.

Longo o fim da tarde,
longo o pio do cupido,
despedia-se o corrupião;
gemiam as oiticicas,
os paus-d’arco, as aroeiras,
quase recolhimento,
Vésper.

O Sol também com sede
corria espavorido lá pras bandas do Piauí, também de sede,
relava a barriga desta vez
espremido dentro do boqueirão por onde também passava
tonitruante o Poti,
um rio velho, cobarde e mentiroso,
camarão que lhe é do nome,
camarão não tem nenhum.

Era de medo da seca,
fugindo do Ceará,
troava o Poti, dentro dos abismos da serra,
para dizer que não estava com medo,
mas estava,
igual ao esmorecido
dentro do túnel,
buzina de medo,
nem olha para os lados, de medo, do túnel;
tanto estava,
desabalava inteiro pro Piauí.
Cobarde !

Esticava o pescoço,
cansado e fumarento,
quase também fugindo,
de medo passava
um trem de poeira e ferro,
de cimento e tralhas,
um velho trem de cinzas,
anunciava-se num apito rouco.
aboio rasgado no chifre do marruá,
despedia-se, tristonho;
arranhava o bico das pedras...
carícia ligeira,
de quase.

O Sol,
ainda ferro de brasa,
chiando como um ferro de ferrar boi,
soltando chispas,
para bater a poeira, as fagulhas do dia,
abanar-se um pouquinho da tarde quente,
se esfregava nos penachos da palmeira mais alta,
cumeeira da Serra Grande,
e os abismos,
onde até bem pouco um abismo,
uma ravina, um boqueirão, a escuridão,
plenificava agora um rasgo de fogo,
um rio de fogo,
em vermelho,
em laranja, ocres,
opalas,
fugidias,
as cores.
Em multi.

E as palmeiras
(de quase-opala, de verde-loiro)
da serra rascante,
cambiavam as brisas entre as copas e os ninhos,
aproveitavam para se dourar às custas do sol,
tentavam agarrá-lo como tinham tentado
um pouco mais cedo,
os jatobás da Serra das Matas,
os oitis da Serra das Matas,
mas, mestre Sol tinha pressa,
muita pressa de muito calor...

E não me venha, capitão, dizer que o Rei fugia,
percorria, porém,
Rei,
ligeiro,
pra lá de chãos.
Suava.
Suava muito.
Eu vi, capitão!

As palmeiras apenas conseguiam tostar os coquilhos,
grandes manadas de lágrimas de sol,
os coquilhos,
miniaturas em amarelo-ouro,
ouro roubado de mestre Sol,
que já ia lá longe,
garganta ardendo de tanta fagulha,
mestre Sol ia beber a água da sede,
também uma colher de mel-de-abelha-jandaíra,
quem sabe, um trago de boa tiquira,
lá no Maranhão,
para quando no Amazonas chegasse,
bem de muitão,
refrescar um pouquinho,
talvez um banho na várzea do crepúsculo,
lá do lado de lá...
que é lá, poente,
poente que lá se põe.

Até de manhã bem cedo...
Pontualmente!
Pontualmente,
de manhã bem cedo, pontualmente:

o Sol,
o galo,
a aurora,
a lufada do vento,
a manhãzinha,
o café forte,
a porta aberta.

É hora!
É hora, meu capitão,
me anote aí, por favor:

Sou do crepúsculo,
da aurora também sou,
testemunhei ora em favor do sol,
ora em favor dos paus,
também em favor da brisa eu fui chamado,
outras vezes, em favor das pedras.

Vi a luta, capitão,
briga braba, de muita luz,
luz luminosa contra o verde-escuro,
de quando chovia;
contra o verde-cinza,
de quando ventava;
contra o cinza cinza,
de quando, Seca, secava!

Testemunhei também em favor da serra,
das franjas do vento;
falei em favor do ocaso,
testifiquei o levante,
se preciso for,
testemunho outra vez.

Nem que o galo cante!

Porque era assim mesmo, meu capitão,
lá no saco,
chamávamos saco,
pois era mesmo um grande saco,
buraco de muitas valas, serras, serranias,
imenso o saco-da-serra,
um vale de paredões,
que era por cima deles se abria o Sol,
um Sol-menino,
espreitando à beiradinha,
tomando chegada por cima da montanha,
só as mãozinhas agarrando o parapeito,
simples vagido daquele Sol-criança...

Mesmo assim, de logo era lançado, arremessado extremo,
até se perder do outro lado do vale,
o lingüeirão de um vasto espanador,
cauda luminescente de um pavão real
e era azul...

Azul-real, o céu da manhã; e a luz,
ora refletida no vermelho-vermelho da fruta,
fruta do mandacaru em flor;
ora brincando de prata
no espinhaço de prata de um peixe de prata,
que as escamas,
trêmulos de luz,
fúlgidos...

Ora brincando de rei,
eis que era o próprio Rei em Rei,
o sol brilhava direto,
sem intermediários, no remanso do rio,
refulgência da malacacheta
em cada brecha do caminho.

Eu vi, capitão,
foi assim mesmo que eu vi!

Brilhavam,
que eram das mesmas alboradas,
da mesma manhã, quand’eu vi,
espelhando na cacimba clara
a menina dos teus olhos,
os molhados,
o teu vestido,
a miragem da cuia,
pois o apanhar da água, uma quase-música,
e os joelhos,
sob o rastro dos céus passantes:
os céus,
n’água,
os olhos...
d'ela.

Enchias o cântaro,
depois,
o caminho,
quando subitamente iam ficando,
no caminho,
os orvalhados de teus pés iam ficando,
na areia respingada eram os desenhos,
em ritmo e sedução, joelhos —
e aquele cântaro era
o cântaro geral de minha sede toda,
tu,
sol geral de todas as manhãs,
pois eram duas,
pois eram dois:
Ela, o Sol;
o cântaro, a sede.

O que mais quer o senhor que eu cante,
de que bicho o senhor quer que eu fale
de quantos pés, o bicho
em quantos pés, o canto ?

Se cantar é preciso,
escute lá, meu capitão:

Cant‘um canto de amor,
posso armar um quadrão,
um galope à beira-mar,
afino viola e bordão
qualquer mote sei cantar
nestas bandas do sertão
preferença de dois pé,
muié-feme, coração.

Sei cantar o arco-íris,
só nun canto muié feia,
canto tudo qu’é estrela,
canto o céu quando clareia
pode ser de vagalume,
dozóios dela, lua cheia.
meu camim é muito claro,
ela que me alumeia.

Cant’inté no escuro
de tarde e de mei’dia
rasgo cerca, pulo muro,
nunca abro da folia,
é rojão pra lá de duro
pá dançar co’a Luzia,
coração de muito fogo,
muito bom na pontaria.

Nun abra desta parada,
venha de lá, seu capitão:
tou espaiando as urtiga
arrancando os cansanção
dô nó e fac’intriga,
neste lado do sertão,
quando tô nun a briga,
bringu’inté cum o Cão.

Alimpe logo o camim,
desarréde, meu capitão! ”

( Francisco José Soares Feitosa - 'Biografia' - 1944/**** )

09/Junho/2006:

“ ANTÍFONA ”
- II - Parte Segunda - ... do medo de apagar o Arco-Íris -

“ "O olho não se cansa de ver
nem o ouvido se sacia de ouvir"
(Eclesiastes, 1:8)

Peneirava,
manhãzinha,
uma chuva clara,
entre a serra da direita, Canabrava,
entre a serra da esquerda, São José do Frade,
(tinha um frade, de pedra)
quando mestre-Sol mandou
o menino Chuvisco armar uma rede
para tirar um cochilo,
de tão cansado,
longa a viagem de todos os dias.

Era de um cerro ao outro a rede de mestre Sol,
a tolda recobria todo o vale,
vasta rede de muitas cores,
vastas franjas, vastas varandas, vastos punhos,
sete,
sete-cores,
sete-raios,
sete-listras,
sete
e a lira!

Era um arco a rede,
parecia cada ponta esconder-se
ao pé de cada morro,
onde diziam os mais velhos,
naquele logar,
pela raiz,
ao tronco,
onde nascia em arco,
como se fora um grande armador-de-rede,
morava ali:
encantado
um pote
de mel-de-engenho, da Serra Grande;
outro de farinha;
um terceiro, d’água,
bem friinha.

Aliás, outros diziam que era um pote só,
apenas um,
porém,
de-ouro
ouro-líquido,
fumegante,
resplandecente o pote.

Outros diziam:
não há pote algum,
apenas o perigo de que passes por baixo do arco
e mudarás de homem
ou mudarás de mulher

(foi assim com Tirésias,
depois de apartar as serpentes;
primeira vez que apartou, virou mulher;
na segunda, virou homem)

pois também quem cortar o arco,
quem lhe apartar as listras,
passando por baixo, passando por dentro
se mulher, vira homem;
se homem, vira mulher,
vira também adivinhão, como Tirésias,
cego fica depois.

Cuidado, cuidado
e ninguém ia lá;
mesmo assim, diziam que dona Durica, de barba,
valentia e cachaça cuspida,
passara por baixo e falava grosso.

Adivinhar ?
Estavam esperando.

Diziam que o compadre Mané Aceno também passara,
não virara em mulher;
pelo contrário,
achara o pote,
de ouro:
moedas, patacões do império, libras esterlinas,
muita prata e muito cobre,
eu vi capitão!

“Veja, comadre Anísia —
disse mestre Mané (pedreiro) Aceno —
guiei-me num sonho,
era uma mulher:

(Alice, sua comadre, não sabe disso,
nem pode saber, cuidado, comadre!)

grande cabeleira de uma égua melada,
entre as crinas e o rabo, da égua, mas era mulher,
bonita,
tão bonita quanto nossa comadre Dica,
bonita,
não deu para ver se era casada, bonita;
era um coque que ela ia soltando
devagarinho,
eu seguindo,
avançando,
cautela,
muito medo, comadre,
da porta da igreja até aquele morro — e apontou —
igualzinho às estrelas de presépio
que têm um caído de banda,
(um cometa, cauda do cometa, compadre)
disse minha mãe.

Era assim mesmo, comadre,
esse tal de cometa;
lá eu cheguei,
na casa do coronel,
abandonada,
debaixo de neblina,
e muito
pois o arco e muito raio
quando ouvi a Voz:

“É na casa velha,
do engenho,
no fecho da forquilha,
basta cavar.”

Latiam uns cães,
era o Cão, comadre,
benzi,
rezei para o finado Otacílio.

Continuaram a latir.
Aí me lembrei e perguntei:
“— quem pode mais do que Deus?”

perguntei trinta e três vezes,
é a idade de Cristo, comadre,
mas os bichos continuaram
latindo, ganindo.

Aí falei, cinco vezes,
nas chagas,
Chagas de Cristo, comadre;
de São Francisco do Canindé também, comadre,
as Chagas.

Os bichos calmaram.
Era o Cão.
Fedeu.
Cavei, comadre, veja!

Riquíssimo pote de ouro,
prosaica cabaça de mel com farinha,
apenas um arco-íris, para mestre Sol tanto faz,
alumeia, tanto faz,
mas
naquele dia, balançava um pouquinho,
só um pouquinho,
acalanto fugaz de quem cansou,
e triscava o dedão do pé no paredão defronte,
onde de manhã bem cedo
ainda menino,
Sol-menino,
apoiara o queixo,
rasgara as mãozinhas,
na hora de nascer.

Era,
ali,
uma brisa leve, um balançar suave,
eis que assustava o tempo um silêncio pesado,
e um vaqueiro velho,
quase também um arco
e silêncio,
Adolfo, de tão velho, silêncio,
foi indagado:

Por que era que mestre Sol
não botava todos os dias
aquela roupa nova,
da feira, talvez fosse,
da missa,
da festa de domingo?

O velho disse:
"É o arco-íris,
só tem quando chuvisca,
não é todo dia que chuvisca
se não, não tem sol-quente
e sem sol-quente
a momona num estrala, o feijão num bageia,
num amarela o milharal”.

O velho disse:
“Precisa!”

O velho disse:
“Quando tem arco-iris
é mode os bichos,
p’aprenderem a cantar,
eles esquecem;
você não viu
o canário-da-terra,
como ele andava capiongo?"

Eu vi, capitão, eu vi,
ou meu testemunho:
Durante o cochilo de mestre Sol,
os bichos-de-pena se acalmavam,
talvez ensaiassem
as lições,
talvez de medo
de apagarem o arco-iris.

Logo depois,
mal mestre Sol acordava e partia,
despregavam o bico,
fúria nos céus,
todos os outros bichos também,
mas os bichos-de-pena cantavam um canto,
estrofes de um novo cântico:

Um gravetinho bem pequeno,
um saltitar achegante,
um pula-daqui,
um pula-dali,
roçavam-se,
mais um saltitar ligeiro,
um fiapinho de algodão,
uns gravetinhos
eram ciscados no bamburral,
no manjericão também,
para cheirar,
de amor e flor,
talvez,
mobília de casa nova montavam,
acho que era.

E mais um vôo, capitão, parecia
o ritual de uma devoção meio aflita,
“o amor é sempre aflito”,
disse o velho, Adolfo.

Mostravam-se — eram dois —
retornavam-se bico a bico, emplumavam-se;
o descompasso de um contágio de penas,
um arrepio de cores,
mais gravetos, mais cantares
e a brisa leve...

Eu vi, capitão:
era um fiar de cores,
um tinir de beijo e canto;
quase pairavam sob um gorjeio miúdo,
instantes
pareciam desejavam algum silêncio:
calmavam-se
si
si si lêncio.

O material, parece,
era aquele mesmo material
da deusa Mater Matuta
suprema deusa do alvorecer, quando tece
a pupila de todas as auroras,
as sete-cores do arco,
tece também a íris dos teus florais, amor,
os ninhos,
os lírios do campo ...
despreocupadamente,
passarinhos.

Despreocupadamente,
passarinhos,
era uma vez um rabo-de-cavalo
e uma franja:

E se fazia a ordenação geral de todas as medidas,
ritmo e batimento de todos os traços,
de todos os gestos,
de todas as linhas,
finíssimas linhas das palmas,
uma palma por entre as palmas,
uma mão por entre as mãos,
a buscada irrepreensível de espinhos inexistentes,

(quando tinham os espinhos,
tiravam-se,
agulha e álcool que não ardiam;
arranca mais outro, amor!)
pois concílio de falanges,
a combustão tátil às portas de todos os dígitos:
mão
entre mãos,
pétala a pétala.

Perseguia-se,
às mãos, o que das mãos já se sabia;

Buscava-se,
na pupila, a luz que não cansava de olhar;

Ouvia-se,
na raiz do gesto, o som do gesto:

Somente as rosas falavam, pois
do perfume da estrela, pois
do silêncio das nascituras folhas,
da sinergia das borbulhas às forquilhas da mata renovada,
rebento de coisa nova,
igual à semente túrgida, à erva úmida, o chão,
o chão profundo,
o estalar da flor: abrindo-se,
alborecendo-se o sol,
sol da manhã, o pássaro, a flor: estávamos...
si...
si...
silêncio.

Si,
silêncio -
sim,
meu senhor,
posto que, nem mesmo Lá
alguém jamais ouviu
o batimento dos céus;
alguém jamais colocou um chocalho
no riscar da estrela rápida;
nem conseguiu medir
o metro do firmamento;
pois muito menos
ouviu o refulgir dos astros.

De longe,
ouvir de longe,
como assim, meu capitão ?

Só se for às conchas do mar salgado;
isso também conto.
Conto depois.

Esvoaçavam
franja
penumbra
apenas.

De que falas afinal, forasteiro?
Enlouqueceste?!
Queres um calmante?

Falo de Maria Helena, capitão,
parece, o senhor não a conhece,
Ela,
Helena,
e era Antônia, Antônia Helena,
Helena Antônia, aquela,
da guerra geral de todos os sentidos,
Ilion,
Tróia. ”

( Francisco José Soares Feitosa - 'Biografia' - 1944/**** )

12/Junho/2006:

“ ANTÍFONA ”
- III - Parte Terceira - Final - ... piso em qualquer chão - 1995 -

“ Agora tu, Calíope, me ensina
o que contou ao Rei o ilustre Gama;
[...]

Senão, direi que tens algum receio
que se escureça o teu querido orpheio.”
(Camões, Lusíadas, Canto Terceiro, 1 e 2)


“ Vem, Calíope,
venham também as outras oito,
Ereupokal, Kliumterthal, quero todas,
e sob Apolo,
a lira.
O que tinha de ver, já vi,
que tinha de escutar, escutei,
agora é a guerra,
o trato de Menelau,
a palavra empenhada aos príncipes gregos,
contra Páris, o ladrão;
engenho e muita força, de todas as armas —
onde tiver, mando buscar.

Acudam-me os cantadores:
Ignácio da Catingueira,
negro e escravo;
Romano da Mãe d’Água;
vocês também fundaram
o galope, a cantoria.

Pinto, do Monteiro,
Otacílio, dos Batistas,
a batistada toda
venham todos,
venham também.

Venha a negra
Barrósa
que desafiou,
e era mulher,
nem se acreditava e desafiou,
mulher fosse gente,
especialmente se negra fosse, desafiou
hoje Benedita, dona Benedita, senhora e senadora,
desafiou e ganhou,
também a dona Barrósa, a senhora dona Barrósa,
de seu Neco dos Martins, o desafio,
que também me acuda,
eram poetas,
ganhou, ganharam,
fundaram este país!

Quero também Aderaldo,
cego,
e outro cego, Dantas, de Nova Russas,
de quando de mim, menino,
a feira, a estação do trem e Osvaldo
que era médico,
médico-doutor e as raízes,
de todos os chãos,
“fundou” a ecologia,
era doido, diziam,
não gostava de farmácia, nem de remédios;
gostava do chão !

Venham também os trovadores,
chegue-me César Coelho,
acuda-me Adaucto Gondim,
valei-me mestre Sinésio Cabral,
vocês todos, um pessoal tão sensível
um cantar tão miúdo,
gigantes porém:

pois como conseguem
encaixotar o início,
passear pelo meio
botar presilha no fim

de tudo qu’é sentimento,
em somente quatro versos
de tudo qu’é bem-querer,
de tudo qu'é universo!?

gigantes são,
pois gigantes venham!

Venha-me também mestre Oldegar,
feiticeiro do hai-kai,
pioneiro nestas terras,
de conseguir enfiar,
dentro de três versinhos
cinco-sete-cinco (tivesse):

a cerejeira,
o monte Fuji,
o Sol Nascente.

Convoco para brigar nesta guerra,
peço ajuda e proteção,
ninguém nunca deles se lembrou:
Zé Cavalcanti, da Paraíba,
Leota, Ceará, Leonardo Mota,
meu compadre Heldenir, de Monsenhor,
outros gigantes e muitos outros
prosa leve e muito solta,
os causeiros, os memorieiros,
os botadores de bonecos, os cantadores de reisado,
das presepadas, presepeiros,
fazedores de sentinela, guias de cego e aleijado,
sabem todas as histórias
verdadeiras e inventadas:

Cobras imensas do Amazonas paroara
(donde voltamos quando chove aqui)

onças matadas de murro,
ferradas n’azagaia,
onça que veio-na-fumaça,
o escalpo do imprudente,
causos do boi-mandigueiro,
astúcias do maracajá,
histórias de muié-gaieira,
marido-brabo, marido-manso
mula-sem-cabeça, lobisomem, encantamento,
de botijas cheias de ouro, prata e cobre;
d’outros feitos e valentia,
histórias de cegos, coronéis, cangaceiros;
adivinhões, profetas da chuva,
rezadores, benzedeiras,
dona Maria do Gildo
e seu raminho de arruda,
capadores e curadores (no rastro!).

Venham, venham,
vocês sabem,
sabem tudo,
eu sei algumas.

Sem as musas,
sem o Olimpo,
sem as fontes,
meu cantar é muito fraco,
inspiração muito curta;
urgem-me aquelas vergônteas
de pau-de-jucá, que nos brotam do coração,
correm pelos tutanos,
mergulham fundo no chão,
e buscam,
profunda que seja,
a água-vida,
esteja onde estiver,
para melhor dizer:
Raízes de céu!
Raízes de chão!

Sem os amarradios do caroá, do agave, do tucum,
sem essas embiras todas,
perenes do bronze, fortes do aço,
os entrançados da casa da aranha,
nunca cai, nem que chova,
nem que rache o sol,
nunca cai, melhor dizendo,
família,
qund’é família !

Ai do cantador que se atrever,
ai daquele que não possa dizer:
eu sou,
eu venho;
eis a essência,
a chave-mestra,
a gota primeira:
nós!

Pois de que jeito, meu capitão?

Tétis, minha mãe, compareceu aos rios,
para cumprir o oráculo,
mas os rios estavam secos,
janeiro,
ainda não chovera,
o único que tinha água fugira para o Piauí,
Poti.

O banho então se fez
no tacho de mel das rapaduras quentes,
engenhos do pé da serra,
aos paredões da Ibiapaba,
à sombra das palmeiras gigantes,
ao som dos besouros azuis,
sorondongos,
torrados,
na pimenta e (farinha)
do reino.

A gente comia
a gente come, os besouros,
as tanajuras.
Comemos também.
João comia gafanhotos e mel.
O Cristo sofreu.
E foi tentado.

Para fustigar as formigas
fui levado às fornalhas das farinhadas de mandioca, onde
bebi da manipueira, quando
o cântaro furou e curti sede grande,
à inclemência do Astro,
mais um reforço,
jamais poderei dizer padecimento,
fazia parte da têmpera!

Guiei-me pelo barbante,
do equador eu venho
e trago,
debaixo de toda a poeira,
daquela terra benta que nunca foi fria, trago
as alpercatas e um calcanhar eu trago;
trago também
o afoito costume
de pisar uma pisada resoluta,
e das forjas daquele chão sagrado trago,
para pisar em qualquer sítio,
um pé.

Vou logo avisando,
é o direito:
com ele tomo a frente,
com ele sei pisar,
cantando galope na beira do mar.

Venho
das alpercatas,
do calcanhar eu venho,
contra a tirania e a empáfia venho;
vistam-se, por favor, todos os reis profanos,
do meu pisar ninguém se ria,
passo-lhes a faca,
é amolado o meu quicé;
ai do rei que profanar de nudez
o verso, o poema, a cantoria!

É daqui mesmo, seu coroné:

é de logar bem de perto,
é de logar bem distante, cheguei,
um pé à frente, o outro atrás, agora;
estou para qualquer parada, aqui;
diga logo, por seu favor, sem demora,
se prefere brigar,
se quer fugir:

piso em qualquer chão!

Apenas,
eis a ressalva,
a única,
razoável e salutar,
prudente e honesto prevenir:

Ela,
com certeza, o calcanhar e os espinhos,
d’Ela,
eu sei,
sempre foram,
sempre serão, desconfio,
mas, por favor,
Achilles,
diga logo como é mesmo que senhor quer qu’eu cante!? ”

( Francisco José Soares Feitosa - 'Biografia' - 1944/**** )

13/Junho/2006:

“ O DEUS-VERME ”
- EU- 1912 -

“ Fator universal do transformismo,
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...

Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção! ”

( Augusto dos Anjos - 'Biografia' - 1884/1914 )

14/Junho/2006:

“ OS ÚLTIMOS DIAS ”
- Antologia Poética- 1962 -

“ Que a terra há de comer.
Mas não coma já.

Ainda se mova,
para o ofício e a posse.

E veja alguns sítios
antigos, outros inéditos.

Sinta frio, calor, cansaço:
pare um momento; continue.

Descubra em seu movimento
forças não sabidas, contatos.

O prazer de estender-se; o de
enrolar-se, ficar inerte.

Prazer de balanço, prazer de vôo.

Prazer de ouvir música;
sobre papel deixar que a mão deslize.

Irredutível prazer dos olhos;
certas cores: como se desfazem, como aderem;
certos objetos, diferentes a uma luz nova.

Que ainda sinta cheiro de fruta,
de terra na chuva, que pegue,
que imagine e grave, que lembre.

O tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de aprender como vivem, de ajudá-las.

De ver passar este conto: o vento
balançando a folha; a sombra
da árvore, parada um instante
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.

E de olhar esta folha, se cai.
Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.

Tem na certa um cheiro, particular entre mil.
Um desenho, que se produzirá ao infinito,
e cada folha é uma diferente.

E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.

No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o silêncio global, mas não seja logo.

Antes dele outros silêncios penetrem,
outras solidões derrubem ou acalentem
meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um
torso de mil anos, recebe minha visita, prolonga
para trás meu sopro, igual a mim
na calma, não importa o mármore, completa-me.

O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz
da vida ficou mais forte, e os naufrágios
não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas;
que os objetos continuam, e a trepidação incessante
não desfigurou o rosto dos homens;
que somos todos irmãos, insisto.

Em minha falta de recursos para dominar o fim,
entretanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,
tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem,
tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.

E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar
partida menos imediata. Ah, podeis rir também,
não da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,
de outros virem depois, de todos sermos irmãos,
no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.

O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.

A doença não me intimide, que ela não possa
chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.

Uma parte de mim sofre, outra pede amor,
outra viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou todas as comunicações, como posso ser triste ?

A tristeza não me liquide, mas venha também
na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,
que lute lealmente com sua presa,
e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esquecimento, amor,
ao fim da batalha perdida.

Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue; com sórdido ou potente clarão.
E todo o mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo.

E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas antes com voz firme, os pensamentos
maduramente pensados, os atos
que atrás de si deixaram situações.
Que o riso sem boca não a aterrorize
e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
dedos torcidos, lívido
suor de remorso.

E a matéria se veja acabar: adeus, composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade
.
Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, idéias de justiça, revolta e sono, adeus,
adeus, vida aos outros legada. ”

( Carlos Drummond de Andrade - 'Biografia' - 1902/1987 )

15/Junho/2006:

“ O ALBATROZ ”
- Tradução de Guilherme de Almeida -

“Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar. ”

( Charles Baudelaire - 'Biografia' - 1821/1867 )

16/Junho/2006:

“ SÓ VOCÊ ”
- CD Plínio Oliveira, 10 Anos - 2005 -

“Sim, é só você, que acende o sol
E ilumina o meu caminho.
Sim, é só você, que me faz rir,
Quando doem os espinhos.
Sim, eu posso ver, que sem você
Em meu mundo não há vida.
Sim, é só você, entre milhões,
Que me acalma as feridas do coração.

Se alguém fala de amor,
Só penso em teu calor.
Se eu lembro dos mistérios do destino,
Fico tonto igual menino,
Com saudade de você.
O nosso amor é assim,
E nunca vai ter fim.
Eu sei que são palavras repetidas,
Mas, amor da minha vida,
Eu preciso lhe dizer.
Queria ser poeta de verdade
Pra cantar a felicidade,
Que é estar perto de você.

Sim, é só você,!
Sim, é só você !”

( Plínio Oliveira - 'O Poeta Cantor' - 1969/**** )

19/Junho/2006:

“ TORRE DE OURO ”
- Broquéis - 1893 -

“Desta torre desfraldam-se altaneiras,
Por sóis de céus imensos broqueladas,
Bandeiras reais, do azul das madrugadas
E do íris flamejante das poncheiras.

As torres de outras regiões primeiras
No Amor, nas Glórias vãs arrebatadas
Não elevam mais alto, desfraldadas,
Bravas, triunfantes, imortais bandeiras.

São pavilhões das hostes fugitivas,
Das guerras acres, sanguinárias, vivas,
Da luta que os Espíritos ufana.

Estandartes heróicos, palpitantes,
Vendo em marcha passe aniquilantes
As torvas catapultas do Nirvana! ”

( Cruz e Sousa - 'Biografia' - 1862/1898 )

20/Junho/2006:

“ À MORTE ”
- Parnaso de Além Túmulo - 1932 -

“ Ó Morte, eu te adorei, como se foras
O Fim da sinuosa e negra estrada,
Onde habitasse a eterna paz do Nada
Às agonias desconsoladoras.

Eras tu a visão idolatrada
Que sorria na dor das minhas horas,
Visão de tristes faces cismadoras,
Nos crepes do Silêncio amortalhado.

Busquei-te, eu que trazia a alma já morta,
Escorraçada no padecimento,
Batendo alucinado à tua porta;

E escancaraste a porta escura e fria,
Por onde penetrei no Sofrimento,
Numa senda mais triste e mais sombria. ”

Antero de Quental: nascido na ilha de São Miguel, nos Açores, em 1842, e desencarnado por suicídio, em 1891. É vulto eminente e destacada nas letras portuguesas, caracterizando-se pelo seu espírito filosófico.

( Antero de Quental / Chico Xavier - 'Biografia' - 1842/1891 )

21/Junho/2006:

“ ASPIRAÇÃO”
- Antologia Poética - 1982 -

“ Já não queria a maternal adoração
que afinal nos exaure, e resplandece em pânico,
tampouco o sentimento de um achado precioso
como o de Catarina Kippenberg aos pés de Rilke.

E não queria o amor, sob disfarces tontos
da mesma ninfa desolada no seu ermo
e a constante procura de sede e não de linfa,
e não queria também a simples rosa do sexo,

abscôndita, sem nexo, nas hospedarias do vento,
como ainda não quero a amizade geométrica
de almas que se elegeram numa seara orgulhosa,
imbricamento, talvez ? de carências melancólicas.

Aspiro antes à fiel indiferença
mas pausada bastante para sustentar a vida
e, na sua indiscriminação de crueldade e diamante,
capaz de sugerir o fim sem a injustiça dos prêmios. ”

( Carlos Drummond de Andrade - 'Biografia' - 1902/1987 )

22/Junho/2006:

“ GARGALHADA ”
- xxx -

“ Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje essa música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim. ”

( Cecília Meireles - 'Biografia' - 1901/1964 )

23/Junho/2006:

“ ELEGIA ”
- xxx -

“ Entrou na sala e ficou em pé tocando piano,
Sua mão pequena batia no teclado
duramente.
Lembro que estava de vermelho
Lembro que tinha nas tranças finas uma fita preta.
Lembro que era de tarde
E entrava pelas janelas abertas o vento do
mar.
Não lembro se tinha flores perto dela,
Mas nascia um perfume do seu corpo.

Que amor o meu! ”

( Augusto Frederico Schmidt - 'Biografia' - 1906/1965 )

26/Junho/2006:

“ O REI REINA E NÃO GOVERNA”
- Apólogo - 1870 -

“ Não sei porque a língua humana
Os brutos não falam mais,
Quando hoje têm melhor vida,
E há muita besta instruída
Nas ciências sociais...

Ultimamente entenderam
Que tinham também razão
De proclamar seus direitos
Pondo em uso os bons efeitos
Que trouxe a Revolução...

"Seja o leão, diz o asno,
Um rei constitucional:
Com assembléias mudáveis,
Com ministros responsáveis,
Não nos pode fazer mal.

Fiquem-lhe as garras ocultas,
Não ruja, não erga a voz,
Conforme a tese moderna
Qu'ele reina e não governa,
Quem governa somos nós...

Todas as bestas da terra,
Todas as bestas do mar
Tenham os seus delegados,
Sendo os ministros tirados
Do seio parlamentar..."

"Muito bem! grita o macaco,
A gente vai ser feliz!
Respeito a ciência alheia;
Publicista de mão cheia,
0 burro sabe o que diz.

Todavia, acho difícil
Que Dom Leão rugidor,
Sujeito à sede e à fome,
Queira ter somente o nome
De rei ou de imperador!...

Acostumado a pegar-nos
Com suas patas reais,
Calar-se, fingir-se fraco!...
Segundo penso eu... macaco...
Dom Leão não pode mais!"

Acode o asno: "Eu lhe explico,
Nada vai a objeção:
Se o rei viola o preceito,
Salvo nos fica o direito
De fazer revolução".

"Mestre burro, isto é asneira,
Palavrão de zurrador,
Esse direito é fumaça,
De que nos serve a ameaça,
Quando nos falta o valor?

Só vejo, que bem nos quadre
No trono, algum animal,
Que coma e viva deitado:
0 porco!... Exemplo acabado
De rei constitucional..." ”

( Tobias Barreto - 'Biografia' - 1839/1889 )

27/Junho/2006:

“ ESTRAMBOTE MELANCÓLICO ”
- Antologia Poética - 1962 -

“ Tenho saudade de mim mesmo, sau-
dade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d'alva
penetra longamente seu espinho

(e cinco espinhos são) na minha mão. ”

( Carlos Drummond de Andrade - 'Biografia' - 1902/1987 )

28/Junho/2006:

“ AMBICIOSA ”
- Charneca em Flor - 1930 -

“ Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
O vôo dum gesto para os alcançar ...

Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar ...
__Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar !

Minh’ alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus !

O amor dum homem ? __Terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento baloiçada ...
Um homem ? __Quando eu sonho o amor de um Deus ! ... ”

( Florbela Espanca - 'Biografia' - 1894/1930 )

29/Junho/2006:

“ A CASADA INFIEL ”
- A Lydia Cabrera e à sua negrinha - -

E eu que fui levá-la ao rio
Certo de que era donzela,
Mas bem que tinha marido.
Foi a noite de São Tiago
E quase por compromisso.
As lâmpadas se apagaram
E se acenderam os grilos.
Já nas últimas esquinas
Toquei seus peitos dormidos,
Que de pronto se me abriram
Como ramos de jacinto.
A goma de sua anágua
Vinha ranger-me no ouvido
Como seda que dez facas
Rasgassem em pedacinhos.
Sem luz de prata nas copas
As árvores têm crescido
E um horizonte de cães
Ladra bem longe do rio.

Após franqueadas as brenhas,
Franqueados juncos e espinhos,
Por baixo de seus cabelos
Fiz um ninho sobre o limo.
Eu tirei minha gravata.
Ela tirou seu vestido.
Eu, cinturão e revolver.
Ela, seus quatro corpinhos.

Nem nardos nem caracóis
Têm cútis com tanto viço,
Nem os cristais sob a lua
Alumbram com igual brilho.
Sua coxas me escapavam
Como peixes surpreendidos,
Metade cheias de lume,
Metade cheias de frio.
Galopei naquela noite
Pelo melhor dos caminhos,
Montado em potra nácar
Sem rédeas e sem estribos.
As coisas que ela me disse,
Por ser homem não repito
Faz a luz do entendimento
Que eu seja assim comedido.
Suja de beijos e areia,
Eu levei-a então do rio.
Contra o vento se batiam
As baionetas dos lírios.

Portei-me como quem sou.
Como gitano legítimo.
Dei-lhe cesta de costura,
Grande, de cetim palhiço,
E não quis enamorar-me,
Pois ela, tendo marido,
Me disse que era donzela
Quando eu a levava ao rio. ”

( Federico Garcia Lorca - 'Biografia' - 1898/1936 )

30/Junho/2006:

“ ANJO ”
- CD Mundo em Paz, Gente em Paz - 2004 -

Não tenho asas nem laurel,
Nem nunca vi um anjo do céu.
Não creio em búzios nem tarô,
Mas não duvido das coisas do amor.

Por isso eu lhe digo, conte comigo
Ainda que eu fosse ateu.
Não sou tão à toa, a vida é tão boa,
Acredito em você e eu.

Eu também posso ser como um anjo,
Protegendo você como um anjo...!!! ”

( Plínio Oliveira - 'O Poeta Cantor' - 1969/**** )

 

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