01/Novembro/2005:
MONÓLOGO DE UMA
SOMBRA
"Sou uma Sombra! Venho
de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
Pairando acima dos mundanos tetos,
Não conheço o acidente da Senectus
- Esta universitária sanguessuga
Que produz, sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento do papirus
E a miséria anatômica da ruga!
Na existência social, possuo
uma arma
- O metafisicismo de Abidarma -
E trago, sem bramânicas tesouras,
Como um dorso de azêmola passiva,
A solidariedade subjetiva
De todas as espécies sofredoras.
Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!
Tal qual quem para o próprio
túmulo olha,
Amarguradamente se me antolha,
À luz do americano plenilúnio,
Na alma crepuscular de minha raça
Como uma vocação para a Desgraça
E um tropismo ancestral para o Infortúnio.
Ai vem sujo, a coçar chagas
plebéias,
Trazendo no deserto das idéias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens,
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!
Quis compreender, quebrando estéreis
normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!
E hão de achá-lo,
amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes
A mostrar, já nos últimos momentos,
Como quem se submete a uma charqueada,
Ao clarão tropical da luz danada,
O espólio dos seus dedos peçonhentos.
Tal a finalidade dos estames!
Mas ele viverá, rotos os liames
Dessa estranguladora lei que aperta
Todos os agregados perecíveis,
Nas eterizações indefiníveis
Da energia intra-atômica liberta!
Será calor, causa úbiqua
de gozo,
Raio* X, magnetismo misterioso,
Quimiotaxia, ondulação aérea,
Fonte de repulsões e de prazeres,
Sonoridade potencial dos seres,
Estrangulada dentro da matéria!
E o que ele foi: clavículas,
abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
-- Engrenagem de vísceras vulgares -
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!
A desarrumação dos
intestinos
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.
É uma trágica festa
emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.
E foi então para isto que
esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...
Num suicídio graduado, consumir-se,
E após tantas vigílias, reduzir-se
À herança miserável dos micróbios!
Estoutro agora é o sátiro
peralta
Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...
Como que, em suas células vilíssimas,
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo.
Brancas bacantes bêbedas
o beijam.
Suas artérias hírcicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias,
E à noite, vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio bazar do meretrício,
O cuspo afrodisíaco das fêmeas.
No horror de sua anômala
nevrose,
Toda a sensualidade da simbiose,
Uivando, à noite, em lúbricos arroubos,
Corno no babilônico sansara,
Lembra a fome incoercível que escancara
A mucosa carnívora dos lobos.
Sôfrego, o monstro as vítimas
aguarda.
Negra paixão congênita, bastarda,
Do seu zooplasma ofídico resulta...
E explode, igual à luz que o ar acomete,
Com a veemência mavórtica do ariete*
E os arremessos de uma catapulta.
Mas muitas vezes, quando a noite
avança,
Hirto, observa através a tênue trança
Dos filamentos fluídicos de um halo
A destra descarnada de um duende,
Que, tateando nas tênebras, se estende
Dentro da noite má, para agarrá-lo!
Cresce-lhe a intracefálica
tortura,
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epiléticos esforços,
Acorda, com os candeeiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos.
É o despertar de um povo
subterrâneo!
É a fauna cavernícola do crânio
- Macbeths da patológica vigília,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades sanguinárias
Que ele tem praticado na família.
As alucinações tactis*
pululam.
Sente que megatérios o estrangulam...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssima existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!
Míngua-se o combustível
da lanterna
E a consciência do sátiro se inferna,
Reconhecendo, bêbedo de sono,
Na própria ânsia dionísica do gozo,
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono!
Ah! Dentro de toda a alma existe
a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
Assim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de uma esfera opaca.
Somente a Arte, esculpindo a humana
mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.
Continua o martírio das
criaturas:
- O homicídio nas vielas mais escuras,
- O ferido que a hostil gleba atra escarva,
- O último solilóquio dos suicidas -
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!"
Disse isto a Sombra. E, ouvindo
estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
Julgava ouvir monótonas corujas
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arrepiadora** do sarcasmo!
Era a elegia*** panteísta
do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.
E o turbilhão de tais fonemas
acres
Trovejando grandíloquos massacres,
Há de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta à quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas!
( Augusto dos Anjos -
'Biografia'
- 1884/1914 )
03/Novembro/2005:
O MÃO SUJA
Minha mão está
suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.
A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia ?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.
E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.
Ai, quantas noites
no fundo da casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
mão limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.
E era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
- o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.
Inútil reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar !
Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura - transparente -
colar-se a meu braço.
( Carlos Drummond de Andrade
- 'Biografia'
- 1902/1987 )
04/Novembro/2005:
HINO DE AGRADECIMENTO
À TERRA
- Obreiros da Vida Eterna -
Ó Terra - mãe
devotada,
A ti, nosso eterno preito
De gratidão, de respeito
Na vida espiritual !
Que o Pai de Graça Infinita
Te santifique a grandeza
E abençoe a natureza
Do teu seio maternal !
Quando errávamos aflitos,
No abismo de sombra densa,
Reformaste-nos a crença
No dia renovador.
Envolveste-nos, bondosa,
Nos teus fluidos de agasalho,
Reservaste-nos trabalho
Na divina lei do amor.
Suportaste-nos sem queixa
O menosprezo impensado,
No sublime apostolado
De terno e infinito bem.
Em resposta aos nossos crimes,
Abriste nosso futuro,
Desde as trevas do chão duro
Aos templos de luz do Além.
Em teus campos de trabalho,
No transcurso de mil vidas,
Saramos negras feridas,
Tivemos lições de escol.
Nas tuas correntes santas
De amor e renascimento.
Nosso escuro pensamento
Vestiu-se de claro sol.
Agradecemos-te a bênção
Da vida que nos emprestas;
Teus rios, tuas florestas,
Teus horizontes de anil,
Tuas árvores augustas,
Tuas cidades frementes,
Tuas flores inocentes
Do campo primaveril !...
Agradecemos-te as dores
Que, generosa, nos deste,
Para a jornada celeste
Na montanha de ascensão.
Pelas lágrimas pungentes,
Pelos pungentes espinhos,
Pelas pedras dos caminhos:
Nosso amor e gratidão !
Em troca dos sofrimentos,
Das ânsias, dos pesadelos,
Recebemos-te os desvelos
De mãe de crentes e incréus.
Sê bendita para sempre
Com tuas chagas e cruzes !
As aflições que produzes !
São alegrias nos céus.
Ó Terra - mãe devotada,
A ti, nosso eterno preito
De gratidão, de respeito,
Na vida espiritual !
Qua o Pai de Graça Infinita
Te santifique a grandeza
E abençoe a natureza
Do teu seio maternal !
( André Luiz / Chico
Xavier - 'Biografia'
- 1910/2002 )
07/Novembro/2005:
PRIMAVERA
A primavera chegará,
mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário,
nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do
sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas
naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam
a preparar sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos
devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes,
e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria
de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododentros
que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os
palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam
a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas
borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, e certamente
conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois
do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores,
alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio
de sol.
Esta é uma primavera diferente,
com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas,
e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega,
coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços
carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido,
de incessante luz.
Mas é certo que a primavera
chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente
se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai
ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que
desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta
ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão
outros, com outros cantos e outros hábitos, e os ouvidos
que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo
aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera,
esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro
dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos
estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas
que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão
sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia
se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra.
Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados
em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita
multicor.
Tudo isto para brilhar um instante,
apenas, para ser lançado ao vento, por fidelidade à
obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade.
Saudemos a primavera, dona da vida e efêmera.
( Cecília Meireles -
'Biografia'
- 1901/1964 )
08/Novembro/2005:
ORA DIREIS OUVIR ESTRELAS
'Ora (direis) ouvir estrelas!
Certo
Perdeste o senso!' E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: 'Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?'
E eu vos direi: 'Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas'.
( Olavo Bilac -
'Biografia'
- 1865/1918 )
09/Novembro/2005:
TEMOS JESUS
- Parnaso de Além-Túmulo -
Desaba o Velho Mundo em
treva densa
E a guerra, como lobo carniceiro,
Ameaça a verdade e humilha a crença,
Nas torturas de um novo cativeiro.
Mas vós, no turbilhão
da sombra imensa,
Tendes convosco o Excelso Companheiro,
Que ama o trabalho e esquece a recompensa
No serviço do bem ao mundo inteiro.
Eis que a Terra tem crimes e tiranos,
Ambições, desvarios, desenganos,
Asperezas dos homens da caverna;
Mas vós tendes Jesus em
cada dia.
Trabalhemos na dor ou na alegria,
Na conquista de luz da Vida Eterna.
ABEL GOMES: poeta e professor,
nascido em Minas Gerais a 30 de Dezembro de 1877 e desencarnado em 16
de Agosto de 1934. Espírito dinâmico, posto que fisicamente
inválido, deixou alguns livros inéditos, dos quais dois
já editados pela Federação Espírita, além
de copiosa obra esparsa.
( Abel Gomes / Chico Xavier
- 'Biografia'
- 1877/1934 )
10/Novembro/2005:
OS DEUSES DA GRÉCIA
- tradução de Maria do Sameiro Barroso -
Quando ainda era o vosso
reino o mundo belo,
Pela vossa mão, o homem era conduzido para a alegria,
Em estirpes bem-aventuradas,
Belos seres do mundo das fábulas.
Porque o vosso culto então resplandecia
Era tudo tão diferente, era tudo um outro tempo,
De flores, Vênus Amatúsia, ainda se coroava
o teu templo!
As vestes mágicas da Poesia
ainda se inclinavam
Docemente para a verdade,
A criação irradiava o sentido para a vida,
Sentia-se como nunca se houvera sentido.
Para a inscrever no seio do amor,
Deu-se as mais altas asas à natureza,
Em tudo havia marcas sagradas,
Em tudo havia vestígios de um deus.
Onde agora, na nossa forma de
ver,
Apenas se move uma bola de fogo sem alma,
Conduzia então o seu carro dourado,
Hélio, na sua majestade calma.
Os cumes dos montes eram habitados por Oréades,
Em cada árvore habitava uma Dríade,
Dos ataúdes de belas Náiades
Saltitavam fios de espuma prateada.
Em cada loureiro, houve, um dia,
um pedido de ajuda
A filha de Tântalo escondeu-se atrás de uma pedra,
O lamento da siringe ecoou pelos canaviais,
Um bosque escutou a dor de Filomela.
E cada ribeiro engrossou, com o pranto que Deméter
Por Perséfone, um dia, derramou.
Destas colinas, Cítereia pelo seu belo amigo
Ah, foi em vão que chamou.
Às bodas de Deucalião
subiram, um dia, os Imortais,
Para conquistar a bela filha de Pirro,
Tomou em suas mãos, o filho de Latona,
O seu bordão de pastor.
Entre homens, deuses e heróis, teceu Amor
Um belo laço,
Em Amatonte, prestaram culto os mortais,
Ao lado de deuses e heróis.
Gravidade sombria e renúncia
triste
Estavam banidas do vosso caloroso culto,
Felizes podiam os corações pulsar,
Porque só os venturosos vos estavam consagrados.
Nada era mais louvado que a beleza,
De nenhuma alegria se devia envergonhar um deus,
Nem do que fazia a casta Camena corar,
Nem do que as Graças tinham para dar.
Ria-se, nos vossos templos, como
nos palácios.
Dignos eram os vossos jogos heróicos,
Nas festas do Istmo, recamadas de flores,
Quando os carros trovejavam para a meta,
Entre danças expressivas, que circulavam
Em volta do vosso resplandecente altar.
Das coroas da vitória se adornava o vosso sono,
De grinaldas, o vosso cabelo fragrante.
O Evoé das alegres bramidoras
do tirso
E a magnífica parelha puxada por panteras
Anunciava o maior arauto da alegria.
Faunos e sátiros cambaleavam à sua frente.
À sua volta surgiam frenéticas Ménades,
As suas danças louvavam o vinho,
E a face trigueira do estalajadeiro
Convidava a beber divertidamente.
Não havia então
qualquer carcaça temível
Para atemorizar o leito dos moribundos.
Um beijo esvoaçava dos lábios, num último alento,
No seu interior, escondia-se um gênio.
Até a severa balança do Orco
Assegurava um poeta ao moribundo.
E perante as queixas clamorosas do Trácio,
Comoveram-se as Erínias.
As alegrias encontravam de novo
as sombras
Aprazíveis, nos Campos Elísios.
O amor verdadeiro encontrava o seu fiel par,
O condutor do carro, o seu caminho.
O instrumento de Lino entoava as canções de sempre.
Nos braços de Alceste afundava-se Admeto,
Orestes reconhecia o seu amigo,
E a sua seta encontrava Filoctetes.
Elevadas honrarias fortaleciam
o lutador,
Incitando-o à virtude dos caminhos valorosos.
Grandes feitos, magníficos vencedores
Elevavam-se até aos Imortais.
Diante de todo aquele que desafiava a Morte,
Inclinavam-se os deuses, numa vênia.
Pelas marés alumiava o piloto,
Do Olimpo o par de gêmeos.
Mundo belo, que é feito
de ti? Regressa,
Abençoada idade florida da natureza!
Só na terra das fadas, das canções,
Vive ainda o teu vestígio fabuloso.
Definhados e tristes, estão agora os campos,
Porque nenhuma divindade se oferece
ao meu olhar.
Desses quadros palpitantes de vida,
Apenas nos resta a sua sombra.
Todas essas flores foram tombadas
pelo vento
Frígido do norte.
Para adorar Um entre todos, teve que perecer
Este mundo de deuses.
Triste, procuro-te no arco-íris, a ti, Selene.
Não te encontro mais.
Grito, através das ondas, das florestas,
E só um eco vazio me responde!
Alheios à alegria que ela
oferece,
Sem entusiasmo pela sua majestade,
Sem a proteção do espírito que ela encerra,
Sem a consagração da minha espiritualidade,
Insensíveis à sua honra de artista,
Assemelhando-se ao bater das horas mortas,
Dobra-se servilmente à lei da espada,
A natureza endeusada.
Para amanhã de novo ser
dispensada,
Para si própria constrói agora o próprio túmulo.
Sobre um fuso sempre igual, para cima e para baixo,
Por si próprios se movimentam os astros.
Ociosos, voltaram para a poesia,
Para a sua casa, os deuses, desnecessários
Ao mundo que, pela sua mão nascido,
No seu próprio peso se sustenta.
Sim, eles regressaram à
sua casa e levaram consigo
Tudo o que era grande e belo consigo,
Todas as cores e todos os matizes da vida.
Ficou-nos a palavra empobrecida.
Retirados das vagas do tempo, pairam,
A salvo, nos cumes do Pindo.
O que permanece imortal, no canto,
Tem que perecer, na vida.
( Johann Cristoph Friedrich
Schiller - 'Biografia'
- 1759/1805 )
11/Novembro/2005:
MORTE
- Parnaso de Além-Túmulo -
Silenciosa madona da tristeza,
A morte abriu-me as catedrais radiosas,
Onde pairam as formas vaporosas
Do país ignorado da Beleza.
Num dilúvio de lírios
e de rosas,
Filhos da luz de uma outra Natureza,
Que entornavam no espaço a sutileza
Dos incensos das naves harmoniosas !
Monja de olhar piedoso, calmo
e austero,
Que traz à Terra um tênue reverbero
Da mansão das estrelas erradias...
Irmã da paz e da serenidade,
Que abriu meus olhos na Imortalidade,
À esperança de todos os meus dias !
( Chico Xavier / A. G. -
'Biografia'
- 1910/2002 )
14/Novembro/2005:
AVE LIBERTAS
Ao clarão irial
da madrugada,
Da liberdade ao toque alvissareiro,
Banhou-se o coração do Brasileiro
Num eflúvio de luz auroreada.
É que baqueia a vida escravizada!
Já se ouvem os clangores do pregoeiro,
Como um Tritão, levando ao mundo inteiro
Da República a nova sublimada.
E ali, do despotismo entre os
escombros,
Rola um drama que a Pátria exalça e doura
Numa auréola de paz imorredoura,
A República rola-lhe nos ombros;
Enquanto fora na trevosa agrura
Sucumbe o servilismo, e, esplendorosa,
A Liberdade assoma majestosa,
- Estrela dAlva imaculada e pura!
É livre a Pátria
outrora opressa e exangue!
Esse labéu que mancha a glória pública,
Que apouca o triunfo e que se chama sangue,
Manchar não pôde as aras da República.
Não! Que esse ideal puro,
risonho,
Há de transpor sereno os penetrais
Da Pátria, e há de elevar-se neste sonho
Ao topo azul das Glórias Imortais!
Esplende, pois, oh! Redentora
dalma,
Oh! Liberdade, essa bendita e branca
Luz que os negrores da opressão espanca,
Essa luz etereal bendita e calma.
Vós, oh Pátria,
fazei que destes brilhos,
Caia do Santuário lá da História,
Fulgente do valor da vossa glória,
A Bênção do valor dos vossos filhos !
( Augusto dos Anjos - 'Biografia'
- 1884/1914 )
16/Novembro/2005:
DIA INTERNACIONAL DA
TOLERÂNCIA
A condição
humana caracterizou-se sempre pela diversidade. No entanto, lamentavelmente,
a aceitação dessa diversidade por parte da humanidade
tem sido difícil. A intolerância em relação
ao outro continua a causar, dia após dia, grande
sofrimento.
Por esta razão, a luta
contra a intolerância sob todas as suas formas constitui, desde
há 60 anos, um aspecto fundamental das atividades das Nações
Unidas. Mas nunca na história da Organização a
tolerância foi tão necessária como hoje. Num mundo
marcado por uma concorrência econômica intensa, por movimentos
de população e pelas distâncias cada vez mais pequenas,
viver com pessoas de culturas e crenças diferentes cria tensões
bastante reais. A escalada da xenofobia e do extremismo em todo o mundo
prova-o de uma maneira evidente e exige de nós uma reação
enérgica. (click
aqui e veja a mensagem completa)
( Kofi Annan - 'Biografia'
- 1938/**** )
17/Novembro/2005:
DO MEU PORTO
- ao caro amigo M. Quintão -
Viajor vacilante e extenuado,
Depois de atravessar a sombra imensa,
Encontrei o país abençoado
Onde vive a celeste recompensa.
Adeus mágoas da noite estranha
e densa,
Das angústias e sonhos do passado,
Não conservo senão o Amor e a Crença,
Ante o novo caminho ilimitado.
É doce descansar após
a lida,
Banhar o coração na luz da vida,
Rememorando as dores que passaram...
E dos quadros risonhos do meu
porto,
Rogo a Jesus conceda reconforto
Aos corações amados que ficaram !
ALBÉRICO LOBO: nascido
na cidade do Rio de Janeiro, em 1865 e desencarnado na mesma cidade,
em Fevereiro de 1942. Funcionário público, colaborou ativamente
na imprensa e deixou opulenta obra esparsa, em prosa e em verso.
( Chico Xavier / Albérico
Lobo - 'Biografia'
- 1910/2002 )
18/Novembro/2005:
A FRESCURA
Ah, a frescura na face
de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que
não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria
à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é
um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.
( Fernando Pessoa / Álvaro
de Campos - 'Biografia'
- 1888/1935 )
21/Novembro/2005:
JESUS
- Parnaso de Além-Túmulo -
Quanta vez, neste mundo
em rumo escuro e incerto,
O homem vive a tatear na treva em que se cria !
Em torno, tudo é vão, sobre a estrada sombria,
No pavor de esperar a angústia que vem perto!...
Entre as vascas da morte, o peito
exangue e aberto,
Desgraçado viajor rebelado ao seu guia,
Desespera, soluça, anseia e balbucia
A suprema oração da dor do seu deserto.
Nessa grande amargura, a alma
pobre, entre escombros
Sente o Mestre do Amor que lhe mostra nos ombros
A grandeza da cruz que ilumina e socorre;
Do mundo é a escuridão,
que sepulta a quimera...
E no escuro bulcão só Jesus persevera,
Como a luz imortal do amor que nunca morre.
ALBERTO DE OLIVEIRA: nascido
em Palmital de Saquarema-RJ, em 1859, e falecido em Niterói-RJ,
no ano de 1937. Farmacêutico, dedicou-se principalmente ao Magistério.
Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, parnasiano de escol,
foi tido como Príncipe dos Poetas de sua geração.
( Alberto de Oliveira / Chico
Xavier - 'Biografia'
- 1859/1937 )
22/Novembro/2005:
LUCAS
- Cachoeiras de Paulo Afonso -
Quem fosse naquela hora,
Sobre algum tronco lascado
Sentar-se no descampado
Da solitária ladeira,
Veria descer da serra,
Onde o incêndio vai sangrento,
A passo tardio e lento,
Um belo escravo da terra
Cheio de viço e valor...
Era o filho das florestas!
Era o escravo lenhador!
Que bela testa espaçosa,
Que olhar franco e triunfante!
E sob o chapéu de couro
Que cabeleira abundante!
De marchetada jibóia
Pende-lhe a rasto o facão...
E assim... erguendo o machado
Na larga e robusta mão...
Aquele vulto soberbo,
Vivamente alumiado,
Atravessa o descampado
Como uma estátua de bronze
Do incêndio ao fulvo clarão.
Desceu a encosta do monte,
Tomou do rio o caminho...
E foi cantando baixinho
Como quem canta pra si.
Era uma dessas cantigas
Que ele um dia improvisara,
Quando junto da coivara
Faz-se o Escravo trovador.
Era um canto languoroso,
Selvagem, belo, vivace,
Como o caniço que nasce
Sob os raios do Equador.
Eu gosto dessas cantigas,
Que me vem lembrar a infância,
São minhas velhas amigas,
Por elas morro de amor...
Deixai ouvir a toada
Do cativo lenhador
E o sertanejo assim solta a tirana,
Descendo lento pra a servil cabana...
( Castro Alves -
'Biografia'
- 1847/1871 )
23/Novembro/2005:
AMIGA
Deixa-me ser a tua amiga,
Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.
Que só, de ti, me venha
magoa e dor
O que me importa a mim? O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!
Beija-me as mãos, Amor,
devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...
Beija-mas bem!... Que fantasia
louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!...
( Florbela Espanca -
'Biografia'
- 1894/1930 )
24/Novembro/2005:
CLAMANDO...
- Broquéis -
Bárbaros vãos,
dementes e terríveis
Bonzos tremendos de ferrenho aspeto,
Ah! deste ser todo o clarão secreto
Jamais pôde inflamar-vos, Impassíveis!
Tantas guerras bizarras e incoercíveis
No tempo e tanto, tanto imenso afeto,
São para vós menos que um verme e inseto
Na corrente vital pouco sensíveis.
No entanto nessas guerras mais
bizarras
De sol, clarins e rútilas fanfarras,
Nessas radiantes e profundas guerras...
As minhas carnes se dilaceraram
E vão, das llusões que flamejaram,
Com o próprio sangue fecundando as terras...
( Cruz e Sousa -
'Biografia'
- 1862/1898 )
25/Novembro/2005:
A CIDADE E AS SERRAS
- trecho do livro -
(...) Por toda a parte
a água sussurrante, a água fecundante...
Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos;
grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra;
fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam
e faiscavam das alturas dos barrancos;
e muita fonte, posta à beira de veredas,
jorrava por uma bica, beneficamente,
à espera dos homens e dos gados (...)
( Eça de Queirós
- 'Biografia'
- 1845/1900 )
28/Novembro/2005:
AJUDA E PASSA
- Parnaso de Além-Túmulo -
Estende a mão fraterna
ao que ri e ao que chora:
O palácio e a choupana, o ninho e a sepultura,
Tudo o que vibra espera a luz que resplendora,
Na eterna lei de amor que consagra a criatura.
Planta a bênção
da paz, como raios de aurora,
Nas trevas do ladrão, na dor da alma perjura;
Irradia o perdão e atende, mundo afora,
Onde clame a revolta e onde exista a amargura.
Agora, hoje e amanhã, compreende,
ajuda e passa;
Esclarece a alegria e consola a desgraça,
Guarda o anseio do bem que é lume peregrino...
Não troques mal por mal,
foge à sombra e à vingança,
Não te aflija a miséria, arrima-te à esperança.
Seja a bênção de amor a luz do teu destino.
( Alberto de Oliveira / Chico
Xavier - 'Biografia'
- 1859/1937 )
29/Novembro/2005:
DO ÚLTIMO DIA
- Parnaso de Além-Túmulo -
O homem, no último
dia, abatido em seu horto,
Sente o extremo pavor que a morte lhe revela;
Seu coração é um mar que se apruma e encapela,
No pungente estertor do peito quase morto.
Tudo o que era vaidade, agora
é desconforto,
Toda a nau da ilusão se destroça e esfacela
Sob as ondas fatais da indômita procela,
Do pobre coração, que é náufrago sem porto.
Somente o que venceu nesse mundo
mesquinho,
Conservando Jesus por verdade e caminho,
Rompe a treva do abismo enganoso e perverso !
Onde vais, homem vão ?
Cala em ti todo alarde,
Foge dessa tormenta antes que seja tarde:
Só Jesus tem nas mãos o farol do Universo.
( Alberto de Oliveira / Chico
Xavier - 'Biografia'
- 1859/1937 )
30/Novembro/2005:
É DIREITO DO
HOMEM
Deveria ser direito de
cada homem,
Morar, pelo menos em algum casebre,
Por mais simples,
Singelo,
Mas quentinho, aconchegante
Que o abrigasse da chuva e do vento gélido.
Deveria ser direito de cada homem,
Comer bem,
Bem no sentido de proteicamente falando,
Não de quantidade,
Não de "encher o buxo" de farinha!
Não!
Deveria ser direito de cada homem,
Ter educação,
Não só a de base, mas a de berço,
Da escola,
Lá aprender o que interessa,
Não o que interessa aos "HOMENS", sabe?
Deveria ser direito de cada homem,
Ter saúde,
Ter como ir ao médico,
Não só de posto de saúde,
Mas médico de corpo e de alma.
Deveria ser direito de cada homem,
A LIBERDADE,
Essa ninguém compra,
Só sabe disso quem não a tem.
Deveria ser direito de cada homem,
Poder amar sem limite,
Poder caminhar de mãos dadas sem se envergonhar,
Poder beijar sem melindres e sem maledicentes olhares,
Todos invejosos por sabermos usar o direito de amar !
( Cristiana de Barcellos Passinato
- 'Biografia'
- 1973/*** )