01/Março/2007:
HISTÓRIA DE UM
CRIME
- Cachoeira de Paulo Afonso - 1870 -
Fazem
hoje muitos anos
Que de uma escura senzala
Na estreita e lodosa sala
Arquejava ua mulher.
Lá fora por entre as urzes
O vendaval sestorcia...
E aquela triste agonia
Vinha mais triste fazer.
A pobre sofria muito.
Do peito cansado, exangue,
Às vezes rompia o sangue
E lhe inundava os lençóis.
Então, como quem se agarra
Às últimas esperanças,
Duas pávidas crianças
Ela olhava... e ria após.
Que olhar! que olhar tão
extenso!
Que olhar tão triste e profundo!
Vinha já de um outro mundo,
Vinha talvez lá do céu.
Era o raio derradeiro.
Que a lua, quando se apaga,
Manda por cima da vaga
Da espuma por entre o véu.
Ainda me lembro agora
Daquela noite sombria,
Em que ua mulher morria
Sem rezas, sem oração!...
Por padre duas crianças...
E apenas por sentinela
Do Cristo a face amarela
No meio da escuridão.
Às vezes naquela
fronte
Como que a morte pousava
E da agonia aljofrava
O derradeiro suor...
Depois acordava a mártir,
Como quem tem um segredo...
Ouvia em torno com medo,
Com susto olhava em redor.
Enfim, quando noite velha
Pesava sobre a mansarda,
E somente o cão de guarda
Ladrava aos ermos sem fim,
Ela, nos braços sangrentos
As crianças apertando,
Num tom meigo, triste e brando
Pôs-se a falar-lhes assim:
Último Abraço
Filho, adeus! Já
sinto a morte,
Que me esfria o coração.
Vem cá... Dá-me tua mão...
Bem vês que nem mesmo tu
Podes dar-lhe novo alento!...
Filho, é o último momento...
A morte a separação!
Ao desamparo, sem ninho,
Ficas, pobre passarinho,
Neste deserto profundo,
Pequeno, cativo e nu!...
Que sina, meu Deus! que
sina
Foi a minha neste mundo!
Presa ao céu pelo desejo,
Presa à terra pelo amor!...
Que importa! é tua vontade?
Pois seja feita, Senhor!
Pequei!... foi grande o
meu crime,
Mas é maior o castigo...
Ai! não bastava a amargura
Das noites ao desabrigo;
De espedaçarem-me as carnes
O tronco, o açoite, a tortura,
De tudo quanto sofri.
Era preciso mais dores,
Inda maior sacrifício...
Filho! bem vês meu suplício...
Vão separar-me de ti!
Chega-te perto... mais perto;
Nas trevas procura ver-te
Meu olhar, que treme incerto,
Perturbado, vacilante...
Deixa em meus braços prender-te
Pra não morrer neste instante;
Inda tenho que fazer-te
Uma triste confissão...
Vou revelar-te um segredo
Tão negro, que tenho medo
De não ter o teu perdão!...
Mas não!
Quando um padre nos perdoa,
Quando Deus tem piedade
De um filho no coração
Uma mãe não bate à toa.
Mãe Penitente
Ouve-me, pois!... Eu fui
uma perdida;
Foi este o meu destino, a minha sorte...
Por esse crime é que hoje perco a vida,
Mas dele em breve há de salvar-me a morte!
E minhalma, bem vês,
que não se irrita,
Antes bendiz estes mandões ferozes.
Eu seria talvez por ti maldita,
Filho! sem o batismo dos algozes!
Porque eu pequei... e do
pecado escuro
Tu foste o fruto cândido, inocente,
Borboleta, que sai do lodo impuro...
Rosa, que sai de pútrida semente!
Filho! Bem vês...
fiz o maior dos crimes
Criei um ente para a dor e a fome!
Do teu berço escrevi nos brancos vimes
O nome de bastardo impuro nome.
Por isso agora tua mãe
te implora
E a teus pés de joelhos se debruça.
Perdoa à triste que de angústia chora,
Perdoa à mártir que de dor soluça!
Mas um gemido a meus ouvidos
soa...
Que pranto é este que em meu seio rola?
Meu Deus, é o pranto seu que me perdoa...
Filho, obrigada pela tua esmola!
( Castro Alves - 'Biografia'
- 1847/1871 )
31/Março/2007:
ESTAMPAS DE VILA RICA
- Antologia Poética - 1982 -
I : CARMO
Não calques o jardim
nem assustes o pássaro.
Um e outro pertencem
aos mortos do Carmo.
Não bebas nesta fonte
nem toques nos altares.
Todas estas são prendas
dos mortos do Carmo.
Quer nos azulejos
ou no ouro da talha,
olha: o que está vivo
são mortos do Carmo.
II : SÃO FRANCISCO DE ASSIS
Senhor, não mereço
isto.
Não creio em vós para vos amar.
Trouxestes-me a São Francisco
e me fazeis vosso escravo.
Não entrarei, Senhor, no
templo,
seu frontispício me basta.
Vossas flores e querubins
são matéria de muito amar.
Dai-me, Senhor, a só beleza
destes ornatos. E não a alma.
Pressente-se dor de homem,
paralela à das cinco chagas.
Mas entro e, Senhor, me perco
na rósea nave triunfal.
Por que tanto baixar o céu ?
por que esta nova cilada ?
Senhor, os púlpitos mudos
entretanto me sorriem.
Mais que vossa igreja, esta
sabe a voz de me embalar.
Perdão, Senhor, por não
amar-vos.
III: MERCÊS DE CIMA
Pequena prostituta em frente a
Mercês de Cima.
Dádiva de corpo na tarde cristã.
Anjos caídos da portada
e nenhum Aleijadinho para recolhê-los.
IV: HOTEL TOFFOLO
E vieram dizer-nos que não
havia jantar.
Como se não houvesse outras fomes
e outros alimentos.
Como se a cidade não nos servisse o seu pão
de nuvens.
Não, hoteleiro nosso repasto
é interior,
e só pretendemos a mesa.
Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.
Tudo se come, tudo se comunica,
tudo, no coração, é ceia.
V: MUSEU DA INCONFIDÊNCIA
São palavras no chão
e memória nos autos.
As casas inda restam,
os amores, mais não.
E restam poucas roupas,
sobrepeliz de pároco,
a vara de um juiz,
anjos, púrpuras, ecos.
Macia flor de olvido,
sem aroma governas
o tempo ingovernável.
Muros pranteiam. Só
Toda história é
remorso.
( Carlos Drummond de Andrade
- 'Biografia'
- 1902/1987 )