01/Fevereiro/2007:
O LUPANAR
- Eu - 1912 -
Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!
Este lugar, moços do mundo,
vede:
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites vêm matar a sede!
É o afrodístico
leito do hetaírismo,*
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,
Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!
( Augusto dos Anjos - 'Biografia'
- 1884/1914 )
15/Fevereiro/2007:
SONHADOR
- Broquéis - 1893 -
Por sóis, por belos sóis alvissareiros,
Nos troféus do teu Sonho irás cantando
As púrpuras romanas arrastando,
Engrinaldado de imortais loureiros.
Nobre guerreiro audaz entre os
guerreiros,
Das Idéias as lanças sopesando,
Verás, a pouco e pouco, desfilando
Todos os teus desejos condoreiros...
Imaculado, sobre o lodo imundo,
Há de subir, com as vivas castidades,
Das tuas glórias o clarão profundo.
Há de subir, além
de eternidades,
Diante do torvo crocitar do mundo,
Para o branco Sacrário das Saudades!
( Cruz e Sousa - 'Biografia'
- 1862/1898 )
28/Fevereiro/2007:
MORTE DE NECO ANDRADE
- Antologia Poética - 1982 -
QUANTO MATARAM
Neco Andrade, não pude sentir bastante emoção porque
tinha de representar no teatrinho de amadores, e essa responsabilidade
comprimia tudo.
A faca relumiou no campo - assim
a vislumbrei, ao circular a notícia - e Neco, retorcendo-se,
tombou do cavalo, e o assassino se curva para verificar a morte, e a
tarde se enovela em vapores escuros e desce a umidade.
Caminhei para o palco temeroso
de não lembrar a frase longa e difícil que me cabia proferir.
O mau amador vive roído de dúvidas. Receava a desaprovação
do auditório, e sua prévia reflexão em mim já
frustrava o gesto, já tolhia a produção do mais
autêntico.
O CAVALO
erra alguns instantes na planície, dedicação sem
alvo. O assassino pondera o entardecer. E vela os despojos, enquanto
mede as possibilidades de fuga. E vêm aí os soldados, atraídos
pelo vento, pelo grito final do Andrade, pela secreta abdicação
do criminoso que, na medida, se sabe perdido. Não podemos matar
nosso patrão; de ventre vazado, ele se vinga.
O cadáver de Neco atravessa
canhestramente o segundo ato, da esquerda para a direita, volta, hesita,
sai, instala-se nos bastidores embaixo da escada. As deixas perderam-se,
o diálogo atropela-se. Neco está se esvaindo em silêncio
e eu, seu primo, não sei socorrê-lo.
O ASSASSINO
chega preso, a multidão acode à cadeia, todos o contemplam
a um metro, nem isso, de distância. Joana roça-lhe a manga
do paletó, sujo de terra. Está sentado, mudo. Na casa
de Neco, em frente à ponte, luzes se armam em velório,
e a escada é toda sonora de botas e botinas rinchando.
Agora o palco ficou vazio para
caber a forma baia e ondulante que progride, esmagando palavras. Da
montaria de Neco pendem as caçambas de Neco. Vai pisar em mim.
Afastou-se no trote deserto.
SERIA REMORSO
por me cansagrar ao espetáculo quando já o sabia morto
? Não, que o espetáculo é grande, e seduzia para
além da ordem moral. E nossos ramos de família nem se
davam. Pena de perdê-lo, nutrida de alguma velha lembrança
particular, que floresce mesmo entre clãs adversários
? Pena comum, que toda morte violenta faz germinar ? Nem isso. Mas o
ventre vazado, como se fosse eu que o vazasse, eu menino, desarmado.
Intestinos de Neco, emaranhados, insolentes, à vista de estranhos.
Vede o interior de um homem, a sede da cólera, aqui os prazeres
criaram raiz, e o que é obscuro em nosso olhar, encontra explicação.
E TUDO
se desvenda: sou responsável pela morte de Neco e pelo crime
de Augusto, pelo cavalo que foge e pelo coro de viúvas pranteando.
Não posso representar mais; por todo o sempre e antes do nunca
sou responsável, responsável, responsável, responsável.
Como as pedras são responsáveis, e os anjos, principalmente
os anjos, são responsáveis.
( Carlos Drummond de Andrade
- 'Biografia'
- 1902/1987 )