02/Agosto/2004:
MÃE II
Nunca te esqueço
os dedos de veludo,
Quando me carregavas no regaço...
Caí da imensidão azul do Espaço,
Qual pássaro da noite, triste e mudo.
Cresci... Estas em tudo quanto
faço...
No entanto, abandonei o lar, o estudo,
Até que do prazer me desiludo
Arrasado de tédio e de cansaço.
Onde a estrela sublime do Universo,
Em que sintas a dor que há no meu verso ?
Vem a mim, alma linda !... Vence a bruma !...
Quanto amor temos nós no
mundo inquieto,
Desde a ligeira estima ao grande afeto,
Mãe, porém, ante Deus, só se tem uma !...
( Chico Xavier/Antonio Barros
- "Biografia"
- 1910/2002 )
03/Agosto/2004:
O MAIS IMPORTANTE
Provavelmente você
estará atravessando longa faixa de provações em
que o ânimo quase que se lhe abate.
Crises e problemas apareceram.
Entretanto, paz e libertação, esperança e alegria
dependem de sua própria atitude.
Se veio a colher ofensa ou menosprezo,
você mesmo pode ser o perdão e a tolerância, doando
aos agressores o passaporte para o conhecimento deles próprios.
Se dificuldades lhe contrariaram
a expectativa de auto-realização, nesse ou naquele sentido,
a sua paciência lhe fará ver os pontos fracos que precisa
anular, a fim de atingir a concretização dos seus planos
em momento mais oportuno.
Se alguém lhe impôs
decepções, o seu entendimento fraterno observará
que isso é uma bênção da vida, imunizando-lhe
o espírito contra a aquisição de pesados e amargos
compromissos futuros.
Se experimenta obstáculos
na própria sustentação, o seu devotamento ao trabalho
lhe conferirá melhoria de competência e a melhoria de competência
lhe alteará o nível de compensações e recursos.
Se você está doente,
é a sua serenidade e a sua cooperação que se fará
base essencial de auxílio aos médicos e companheiros que
lhe promovem a cura.
Se sofre a incompreensão
de pessoas queridas, é a sua bondade com o seu desprendimento
que se lhe transformará em arrimo para que os entes amados retornem
ao seu mundo afetivo.
Evite as complicações
de rebeldia e inconformidade, ódio e inveja, egoísmo e
desespero que apenas engrossarão o seu somatório de angústia.
Mudanças, aflições,
anseios, lutas, desilusões e conflitos sempre existiram no caminho
da evolução; por isso mesmo, o mais importante não
é aquilo que aconteça e sim o seu modo de reagir.
( Chico Xavier/André
Luiz - "Biografia"
- 1910/2002 )
04/Agosto/2004:
ALEGRIA
Alegria é o cântico
das horas com que Deus te afaga a passagem no mundo.
Em toda parte, desabrocham flores por sorrisos da natureza
e o vento penteia a cabeleira do campo com música de ninar.
A água da fonte é
o carinho liquefeito no coração da terra
e o próprio grão de areia, inundado de sol,
é mensagem de alegria a falar-te do chão.
Não permitas, assim, que
a tua dificuldade
se faça tristeza entorpecente nos outros.
Ainda mesmo que tudo pareça
conspirar
contra a felicidade que esperas,
ergue os olhos para a face risonha da vida
que te rodeia e alimenta a alegria por onde passes.
Abençoa e auxilia sempre,
mesmo por entre lágrimas.
A rosa oferece perfume sobre a garra do espinho
e a alvorada aguarda, generosa,
que a noite cesse para renovar-se, diariamente,
em festa de amor e luz.
( Meimei / Chico Xavier - Irma
de Castro Rocha - 1922 / 1946 )
05/Agosto/2004:
O QUE REALMENTE IMPORTA
Que importa crer nesta
ou naquela religião,
se essa crença não tornar o homem melhor,
mais bondoso e mais indulgente para com os seus semelhantes,
mais humilde e mais paciente na adversidade ?
De que serve ao avarento ser deste
ou daquele culto,
se continuar a ser avarento ?
Ao orgulhoso, se continuar a ser cheio de si ?
Ao invejoso, se permanecer ciumento ?
Todos os homens poderiam praticar
esta ou aquela doutrina religiosa
e a Humanidade continuaria estacionária.
( Prof. Celso Martins - 'Artigos'
)
06/Agosto/2004:
PERFUME DE DEUS
Derramou-se o perfume
Das alturas celestes.
Os homens o puseram
Em vasos numerosos;
Uns esguios e altos,
Outros amplos e ovóides;
Alguns feitos de ouro,
Outros de barro ou prata.
Tantas formas diversas,
Mas o aroma era o mesmo.
Esta - é a história
do amor,
O perfume de Deus.
( Chico Xavier/Emmanuel - "Biografia"
- 1910/2002 )
09/Agosto/2004:
BASTA LEMBRAR
Se estás na fé
cristã
e esperas tão-somente:
caminhos sem problemas,
paz sem obrigações,
dias de céu sempre azul,
vantagens sem trabalho,
conquistas sem suor,
direitos sem deveres,
apoio sem serviço
e vida sem provações,
lembra-te de Jesus.
( Chico Xavier/Emmanuel - "Biografia"
- 1910/2002 )
10/Agosto/2004:
CANÇÃO
DO EXÍLIO
- Coimbra, julho, 1843 -
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu
morra,
Sem que volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
( Gonçalves Dias - "Antônio
Gonçalves Dias" - 1823/1864
)
11/Agosto/2004:
MARÍLIA DE DIRCEU
- Veja
aqui a Obra Completa -
Lira I
Eu, Marília, não
sou algum vaqueiro
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado,
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite
e mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte;
dos anos inda não está cortado:
os pastores, que habitam este monte,
respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
que inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste;
nem canto letra que não seja minha.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Mas tendo tantos dotes da ventura,
só apreço lhes dou, gentil pastora,
depois que o teu afeto me segura
que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
de um rebanho, que cubra monte e prado;
porém, gentil pastora, o teu agrado
vale mais que um rebanho e mais que um trono.
Graças, Marília bela,
graças à minha Estrela !
Os teus olhos espalham luz divina,
a quem a luz do sol em vão se atreve;
papoila ou rosa delicada e fina
te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d'ouro;
teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! não, não fez o céu, gentil pastora,
para a glória de amor igual tesouro!
Graças, Marília bela,
graças à minha Estrela!
Leve-me a sementeira muito embora
o rio, sobre os campos levantado;
acabe, acabe, a peste matadora,
sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso
nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
para viver feliz, Marília basta
que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças, Marília bela,
graças à minha Estrela!
Irás a divertir-te na floresta,
sustentada, Marília, no meu braço;
aqui descansarei a quente sesta,
dormindo um leve sono em teu regaço;
enquanto a luta jogam os pastores,
e emparelhados correm nas campinas,
toucarei teus cabelos de boninas,
nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
graças à minha Estrela!
Depois que nos ferir a mão
da Morte,
ou seja neste monte, ou noutra serra,
nossos corpos terão a sorte
de consumir os dous a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
lerão estas palavras os pastores:
'Quem quiser ser feliz nos seus amores,
siga os exemplos que nos deram estes'.
Graças, Marília bela,
graças à minha Estrela!
Lira III
Tu não verá, Marília,
cem cativos
Tu não verás, Marília, cem cativos
tirarem o cascalho e a rica terra,
ou dos cercos dos rios caudalosos,
ou da minada serra.
Não verás separar
ao hábil negro
do pesado esmeril a grossa areia,
e já brilharem os granetes de oiro
no fundo da bateia.
Não verás derrubar
os virgens matos,
queimar as capoeiras inda novas,
servir de adubo à terra a fértil cinza,
lançar os grãos nas covas.
Não verás enrolar
negros pacotes
das secas folhas do cheiroso fumo;
nem espremer entre as dentadas rodas
da doce cana o sumo.
Verás em cima da espaçosa
mesa
altos volumes de enredados feitos;
ver-me-ás folhear os grandes livros,
e decidir os pleitos.
Enquanto revolver os meus consultos,
tu farás gostosa companhia,
lendo os fastos da sábia, mestre história,
e os cantos da poesia.
Lerás em alta voz, a imagem
bela;
eu, vendo que lhe dás o justo apreço,
gostoso tornarei a ler de novo
o cansado processo.
Se encontrares louvada uma beleza,
Marília, não lhe invejes a ventura,
que tens quem leve à mais remota idade
a tua formosura.
Lira VII
Vou retratar a Marília,
A Marília, meus amores;
Porém como? Se eu não vejo
Quem me empreste as finas cores:
Dar-mas a terra não pode;
Não, que a sua cor mimosa
Vence o lírio, vence a rosa,
O jasmim, e as outras flores.
Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Mas não se esmoreça
logo;
Busquemos um pouco mais;
Nos mares talvez se encontrem
Cores, que sejam iguais.
Porém não, que em paralelo
Da minha Ninfa adorada
Pérolas não valem nada,
E nada valem corais.
Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Só no Céu achar-se
podem
Tais belezas, como aquelas,
Que Marília tem nos olhos,
E que tem nas faces belas.
Mas às faces graciosas,
Aos negros olhos, que matam,
Não imitam, não retratam
Nem Auroras, nem Estrelas.
Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Entremos, Amor, entremos,
Entremos na mesma Esfera,
Venha Palas, venha Juno,
Venha a Deusa de Citera,
Porém não, que se Marília
No certame antigo entrasse,
Bem que a Páris não peitasse,
A todas as três vencera.
Vai-te, Amor, em vão socorres
Ao mais grato empenho meu:
Para formar-lhe o retrato
Não bastam tintas do Céu.
Lira XIV
Minha bela Marília, tudo
passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
Então os mesmos Deuses
Sujeitos ao poder do ímpio Fado:
Apolo já fugiu do Céu brilhante,
Já foi Pastor de gado.
A devorante mão da negra
Morte.
Acaba de roubar o bem, que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte.
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos
Ferro do torto arado.
Ah! enquanto os Destinos impiedosos
Não voltam contra nós a face irada,
Façamos, sim façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
Um coração, que frouxo
A grata posse de seu bem difere,
A si, Marília, a si próprio rouba,
E a si próprio fere.
Ornemos nossas testas com as flores.
E façamos de feno um brando leito,
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos Amores.
Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo, que se passa,
Também, Marília, morre.
Com os anos, Marília, o
gosto falta,
E se entorpece o corpo já cansado;
triste o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho sempre alegre salta.
A mesma formosura
É dote, que só goza a mocidade:
Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
Mal chega a longa idade.
Que havemos de esperar, Marília
bela?
Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
Ah! Não, minha Marília,
Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças
E ao semblante a graça.
( Tomás Antônio
Gonzaga - "O
Poeta da Inconfidência"
- 1744/1810 )
12/Agosto/2004:
CADA PESSOA
Cada pessoa é aquilo
que crê;
fala do que gosta;
retém o que procura;
ensina o que aprende;
tem o que dá
e vale o que faz.
Sempre fácil, portanto,
para cada um de nós reconhecer
os esquemas de vivência
em que nos colocamos.
( Chico Xavier/Emmanuel - "Biografia"
- 1910/2002 )
13/Agosto/2004:
O PÁSSARO CATIVO
Armas, num galho de árvore,
o alçapão
E, em breve, uma avezinha descuidada,
Batendo as asas cai na escravidão.
Dás-lhe então, por esplêndida morada,
Gaiola dourada;
Dás-lhe alpiste, e água
fresca, e ovos e tudo.
Por que é que, tendo tudo, há de ficar
O passarinho mudo,
Arrepiado e triste sem cantar ?
É que, criança, os pássaros não falam.
Só gorjeando a sua dor
exalam,
Sem que os homens os possam entender;
Se os pássaros falassem,
Talvez os teus ouvidos escutassem
Este cativo pássaro dizer:
'Não quero o teu alpiste!
Gosto mais do alimento que procuro
Na mata livre em que voar me viste;
Tenho água fresca num recanto escuro
Da selva em que nasci;
Da mata entre os verdores,
Tenho frutos e flores
Sem precisar de ti!
Não quero a tua esplêndida
gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola,
De haver perdido aquilo que perdi...
Prefiro o ninho humilde construído
De folhas secas, plácido,
escondido.
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
Quero saudar as pombas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde,
Entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade!
Não me roubes a minha liberdade...
Quero voar ! Voar !'
Estas cousas o pássaro
diria,
Se pudesse falar,
E a tua alma, criança, tremeria,
Vendo tanta aflição,
E a tua mão tremendo lhe abriria
A porta da prisão...
( Olavo Bilac - "Biografia"
- 1865/1918 )
16/Agosto/2004:
TORTURAS
O art. V da Declaração
de Direitos do Homem assim se exprime:
- Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento
u castigo cruel, desumano e degradante.
Eis aí outro dispositivo que a nossa ingenuidade
julgaria de todo supérfluo se não fosse a experiência
universal que teve a nossa geração, a partir da guerra
de 1914 e particularmente das revoluções posteriores,
comunistas e fascista. Pois as guerras revolucionárias ou as
revoluções belicosas, como têm sido as do nosso
século, são particularmente implacáveis. O século
XX tentou 'civilizar'as guerras, chegando mesmo a codificar as 'leis
de guerra'. O século XX assistiu ao advento de um novo tipo de
guerra e de revolução: as guerras e revoluções
'totalitárias' que abrangem toda a vida de um povo, desde o pensamento
filosófico até os costumes domésticos (a delação
entre pais e filhos, por exemplo). Assim, passou a 'desumanizar' as
guerras e as revoluções, através do emprego de
um método que, no século passado, tinha sido privilégio
do anarquismo: o terrorismo. Os ataques alemães em 1914,
por exemplo, foram precedidos ou acompanhados de um fator apavorante
inédito: o ruído. O pânico produzido nas populações
pelas sereias de aviões em 'vol piqué' foram, nas invasões
de 1914 e 1940, um dos elementos essenciais para 'desmoralizar' os civis,
já que uma das características das guerras e revoluções
do século XX foi o desaparecimento da separação
entre civis e militares.
Tudo isso faz parte desse fenômeno da desumanização
das guerras e revoluções, típico do culto da
violência, que veio crescendo ao longo dos séculos.
A volta à tortura foi um dos sinais dessa corrupção
do ótimo pelo péssimo, que representou, em nosso tempo,
o emprego da ciência e da tecnologia mais avançadas, a
serviço da destruição. O medo foi e continua
a ser utilizado como uma arma eficaz, tanto na ação
como na reação dos processos bélicos e revolucionários!
O espetáculo dos 'campos de concentração', por
exemplo, foi sem dúvida uma das mais tristes novidades do século.
E os campos de concentração, aplicados sobretudo à
mais cruel e inumana das formas guerreiras do nosso século,
a guerra aos judeus na Alemanha Nazista e a guerra aos 'burgueses'
e 'kulaks' na Rússia Soviética, foram uma visão
típica da institucionalização da tortura. Pois
assim como há vários tipos de escravidão, há
também vários tipos de tortura, os principais deles sendo
a tortura violenta e a tortura lenta: a tortura direta e a tortura indireta.
Já contei alhures a visão terrível que tive, certa
vez, em Paris, de um ilustre intelectual francês de sangue israelita,
o professor Izaacs, companheiro de Péguy nos 'Cahiers de la Quinzaine',
que passou pela seguinte tortura lenta. Durante a ocupação
alemã na França de 1940, vivia em Paris, com a mulher
e a filha, sob nome suposto. Chegando em casa, certo dia, deu por falta
delas. Informaram-lhe que a Gestapo as tinha levado durante sua ausência.
Foi ao posto da Gestapo. Denunciou seu nome verdadeiro, implorando que
soltassem a mulher e a filha. Declararam-lhe que nada tinham contra
ele, mas ignoravam o destino das duas. E nunca mais soube delas. Deixaram-lhe
a liberdade como a mais cruel das torturas!
Conto o caso como um entre milhares que tornam
a nossa época um contraste monstruoso entre o máximo conforto
obtido por uma sociedade de 'consumo' indefinido e o máximo de
crueldade alcançada pelos meios mais desumanos de promover as
guerras e as revoluções que se vêm sucedendo ao
longo do século.
Não temos, portanto, de nos espantar quando
os homens de bom senso e de boa vontade que elaboraram esse código,
de bom viver, não só em nosso século, mas em qualquer
momento da história, tenham registrado com especial destaque
o problema da tortura, que a minha geração, no começo
do século, considerava como fenômeno apenas característico
do 'obscurantismo medieval': Com o tempo aprendemos que a Idade
Média não era tão obscurantista como a tinham descrito
na imagem de 'uma noite de dez séculos' (a menos que fosse uma
noite bem estrelada...), nem os tempos modernos tão humanizados,
em seus costumes, como nos faziam crer as leis da guerra, que proibiam
o emprego das 'balas-dum-dum'.
Hoje em dia as balas dum-dum já seriam
consideradas como 'humanitárias' em confronto com o 'napalm'
ou os produtos preparados com vistas à guerra química
ou à 'guerra biológica'.
Quanto ao emprego da tortura como arma normal
das guerras, revoluções e policiais do nosso século,
está amplamente documentado em publicações e testemunhos
pessoais, particularmente a partir da guerra da Argélia. Tudo
leva a crer que a evolução do 'progresso' se vem fazendo,
simultaneamente, tanto no sentido do bem como no sentido do mal. O que
aliás está perfeitamente de acordo com a primazia crescente
da Ciência e da Tecnologia, como sendo os elementos dominantes
na civilização contemporânea. Tanto a Ciência
como a Técnica são, em si, totalmente alheias a critérios
morais. Estão para lá do Bem e do Mal. Sendo assim
progridem apenas no sentido de uma intensificação crescente
de seus próprios objetivos. Uma vez admitida a legitimidade da
tortura ou a sua introdução de fato pela Policia, seu
"progresso" será no sentido de ser cada vez mais cruel.
Uma vez admitido o emprego de 'todos os meios' para alcançarmos
um determinado fim, o progresso desses meios será apenas medido
pela sua eficiência e não pela sua legitimidade ou humanidade.
Quando se considera que as guerras, revoluções e regimes
políticos de fato têm direitos ilimitados, porque se legitimam
por si mesmos e sua legitimidade está apenas no seu êxito,
então o progresso da tortura está na sua implantação
mais cruel e ilimitada e os castigos impostos aos adversários
serão tanto mais legítimos quanto mais aniquiladores.
Essa experiência que os regimes totalitários
ou falsamente democráticos trouxeram ao nosso século
é a maior justificativa para a oportunidade deste artigo da 'Declaração
dos Direitos do Homem', segundo o qual 'ninguém será submetido
à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante'.
( Alceu Amoroso Lima - "Biografia"
- 1893/1983 )
17/Agosto/2004:
HINO À AURORA
- Cantos de Solidão, 1852 -
E já no campo azul
do firmamento
A noite extingue os círios palejantes,
E em silêncio arrastando a fímbria escura
Do tenebroso manto
Transpõe do ocaso os montes derradeiros.
A terra, de entre as sombras ressurgindo
Do mole sono lânguida desperta
E qual noiva gentil, que o esposo aguarda,
De galas se adereça.
Rósea filha do sol, eu
te saúdo !
Formosa virgem de cabelos d'ouro,
Que prazenteira os passos antecedes
Do rei do firmamento,
Em seus caminhos flores despargindo!
Salve, aurora! - quão donosa surges
Nos azulados topes do oriente
Desfraldando o teu manto aurirrosado!
qual cândida princesa
que em desalinho lânguida se erguera
Do brando leito, em que sonhou venturas,
Tu lá no etéreo trono vaporoso
Entre cantos e aromas festejada,
Sorrindo escutas os melífluos quebros
Das mil canções com que saúda a terra
O teu raiar sereno.
Também tu choras, pois
em minha fronte
Sinto teu pranto, e o vejo em gotas límpidas
A cintilar na trêmula folhagem:
Assim no rosto da formosa virgem
- Efeito às vezes de amoroso enleio -
Brilha através das lágrimas o riso.
Bendiz o viajor extraviado
Tua luz benigna que a vereda aclara,
E mostra ao longe fumegando os tetos
De alvergue hospitaleiro.
Pobre colono alegre te saúda,
Por ver em torno do singelo colmo
Sorrir-se vicejante a natureza,
Manso rebanho retouçar contente,
Crescer a messe, as flores desbrocharem;
E unindo a voz aos cânticos da terra,
Aos céus envia sua humilde prece.
E o desditoso, que entre angústias vela
No inquieto leito sôfrego volvendo-se,
Espia ansioso o teu fulgor primeiro,
que lhe derrama nas feridas d'alma
Celeste refrigério.
A ave canora para ti reserva
De seu cantar as mais suaves notas:
E a flor, que expande o cálix orvalhado
As estremes primícias te consagra
De seu brando perfume...
Vem, casta virgem, vem com teu sorriso,
Teus perfumes, teu hálito amoroso,
Esta cuidosa fronte bafejar-me;
Orvalho e fresquidão piedosa verte
Nos ardentes delírios de minh'alma,
E desvanece estas visões sombrias,
Funestos sonhos da penada noite!
Vem, ó formosa... Mas que é feito dela?...
O sol já mostra na brilhante esfera
O disco ardente e a linda moça etérea
Que inda há pouco entre flores reclinada
Sorria-se amorosa no horizonte,
Enquanto a saudava com meus hinos
- Imagem do prazer, que breve dura, -
Se esvaeceu nos ares...
Adeus, esquiva ninfa,
Fugitiva ilusão, aérea fada!
Adeus também, canções enamoradas,
Adeus, rosas de amor, adeus, sorrisos...
( Bernardo Guimarães
- "Biografia"
- 1825/1884 )
18/Agosto/2004:
ARQUÉTIPO
- São Paulo, 1861 -
Ele era belo; na espaçosa
fronte
O dedo do Senhor gravado havia
O sigilo do gênio; em seu caminho
O hino da manhã soava ainda,
E os pássaros da selva gorjeando
Saudavam-lhe a passagem neste mundo.
Sim, era uma criança, e
no entanto
Friez de morte lhe coava n'alma!
O seu riso era triste como o inverno,
E dos olhos cansados, nem um raio
Nem um clarão, nem pálido lampejo
Da mocidade o fogo revelavam!
Era-lhe a vida uma comédia
insípida,
Estúpida e sem graça, - ele a passava
Com a fria indiferença do marujo
Que fuma o seu cachimbo reclinado
Na proa do navio, olhando as vagas,
- Vivia por viver... porque vivia.
Em nada acreditava, há
muito tempo
Que a idéia de Deus soprara d'alma
Como das botas a poeira incômoda.
O evangelho era um livro de anedotas.
Beethoven torturava-lhe os ouvidos,
A poesia provocava o sono.
Muita donzela suspirou por ele,
Muita beleza lhe dormiu nos braços,
Mas frio como o gênio da descrença,
Após uma hora de gozar maldito
Saciado, as deixou, como o conviva
A mesa do festim, - farto e cansado.
Era mais caprichoso, - mais bizarro
Do que um filho de Albion, mais volúvel
Que um profundo político; uma tarde
Após haver jantado, recordou-se
Que ainda era solteiro; Pelo Papa!
- É preciso tentar, disse consigo.
Quatro dias depois tinha casado.
Escolhera uma noiva descuidoso,
Como um brinco chinês - um livro in-fólio,
Ao altar conduziu-a, distraído,
E as juras divinais do casamento
Repetiu bocejando ao sacerdote.
Como tudo na vida, o matrimônio
Bem cedo o aborreceu; após três meses
Disse adeus à mulher que pranteava,
E acendendo um cigarro, a passos lentos
Dirigiu-se ao teatro onde assistiu
Um drama de Feuillet -, quase dormindo.
Por fim de contas, uma noite bela,
Depois de ter ceado entre dois padres,
Em casa da morena Cidalisa,
Pegou uma pistola e entre as fumaças
De saboroso havana, à eternidade
Foi ver se divertia-se um momento.
( Fagundes Varela - "Luís
Nicolau Fagundes Varela" -
1841/1875 )
20/Agosto/2004:
MEU MELHOR LIVRO DE
LEITURA
- Vintém de Cobre, 1987 -
(...)
Minhas estórias de Carochinha, meu melhor livro de leitura,
capa escura, parda, dura, desenhos preto e branco.
Eu me identificava com as estórias.
Fui Maria e Joãozinho perdidos na floresta.
Fui a Bela Adormecida no Bosque.
Fui Pele de Burro. Fui companheira de Pequeno Polegar
E viajei com o Gato de Sete Botas. Morei com os anõezinhos.
Fui a Gata Borralheira que perdeu o sapatinho de cristal
na correria de volta, sempre à espera do príncipe encantado,
desencantada de tantos sonhos
nos reinos da minha cidade.
Mãe Didi... Por onde vão
os rumos de meus pensamentos,
sempre presente minha madrinha fada.
Eu a vejo em Mãe Didi.
Tia Nhorita, Didinha, seus farnéis
inesgotáveis de bondade,
de biscoito e brevidades,
sustentando a Aninha, desamada, abobada e feia
caso perdido, pensavam todos.
O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada.
Caminhando e semeando, no fim, terás o que colher.
( Cora Coralina - "Ana
Lins dos Guimarães Peixoto Bretas"
- 1889/1985 )
23/Agosto/2004:
EVOLUÇÃO
A Humanidade não
para de evoluir.
Lentamente, é certo, mas com segurança.
A evolução é uma fatalidade. Nada estaciona.
Os homens evolvem, queiram ou não queiram.
Por livre-arbítrio ou compulsoriamente, pelo acicate da dor.
O antropófago um dia será vegetariano.
Um dia, o hotentote será sábio.
No pensar de L. Morley, a evolução não é
uma força,
é um processo; não é uma causa, é uma lei.
( Aureliano Alves Neto - "Artigo"
- xxxx/xxxx )
24/Agosto/2004:
O BICHO ALFABETO
O bicho alfabeto
tem vinte e três patas
ou quase
por onde ele passa
nascem palavras
e frases
com frases
se fazem asas
palavras
o vento leve
o bicho alfabeto
passa
fica o que não se escreve.
( Paulo Leminski - "Biografia"
- 1944/1989 )
25/Agosto/2004:
AS MOÇAS
Ó moças que
buscáveis
o grande amor, o grande amor, terrível,
o que aconteceu, moças ?
Talvez
o tempo, o tempo!
Porque agora
aqui está, vê como passa
assustando as pedras celestes,
destruindo as flores e as folhas,
com ruído de espumas açoitadas
contra todas as pedras de teu mundo,
com um cheiro de esperma e de jasmins,
perto da lua sangrenta.
E agora
tocas a água com teus pés pequenos,
com teu pequeno coração
e não sabes o que fazer!
São melhores
certas viagens noturnas,
certos apartamentos,
certos divertidíssimos passeios,
certos bailes sem maior conseqüência
do que seguir a viagem!
Morre de medo ou de frio,
ou de dúvida,
que eu com meus grandes passos
a encontrarei
dentro de ti,
ou longe de ti,
e ela me encontrará,
a que não tremerá diante do amor,
a que estará fundida
comigo
na vida ou na morte !
( Pablo Neruda - Neftalí
Ricardo Reyes Basoalto - 1904/1973
)
26/Agosto/2004:
BALADA AO AMOR QUE NÃO
VEIO
Se acaso penso em ti, me
inquieta o pensamento...
Por que havias de vir assim tarde demais?
Bem que eu tinha de há muito um cruel pressentimento,
-- e há sempre um desespero em nós, se num momento
desejamos voltar a vida para trás...
Neste instante imagino o que teria
sido
o meu vago destino desorientado,
se antes, eu já te houvesse um dia conhecido,
a esse tempo, meu Deus!... -- e esse tempo perdido
pudesse ao teu convívio ter aproveitado!
Não há nada entre
nós, nada... e em verdade há a vida
que nos chama e nos prende!... E já agora imagino
que aqui estas ao meu lado a ouvir-me comovida
e me entregas a mão, -- e entrego-te vencida
a minha alma, -- e com ela todo o meu destino!
Não há nada entre
nós, -- mas se nos encontramos
ouvirás de hoje em diante um poema onde tu fores,
-- trouxemos o destino estranho de dois ramos,
separados, -- que importa? ainda assim nos juntamos
confundindo as ramagens, misturando as flores...
E eu nem te vi direito! Um olhar
sob um véu,
(há qualquer coisa estranha num olhar velado...)
-- um olhar, -- não direi que em teu olhar há um céu,
quando sei que afinal há tanta angustia e fel
em tudo o que me tens da vida revelado!
Acompanhei-te o vulto um segundo,
alguns passos,
nada mais, e no entanto, se quiser pensar
sou capaz de te ver, ( há gestos nos espaços,
e guardei a visão dos teus braços, -- teus braços
guardei-os, como dois clarões dentro do olhar!)
E devem ser macias as tuas mãos,
-- não ouso
pensar no que elas guardem nos seus finos dedos,
-- pensando em tuas mãos, penso em sombra, em repouso,
num lugar quieto e bom, e num vento amoroso
a soprar entre as folhas múrmuros segredos...
Mas... que saibas perdoar estas
coisas que escrevo,
pensei-as a escutar distante a tua voz,
e há algumas coisas mais, que a dizer não me atrevo,
é que escrevo demais, e não posso, e não devo,
e não tenho o direito de falar de nós...
( J. G. de Araújo Jorge
- José
Guilherme de Araújo Jorge
- 1914/1987 )
27/Agosto/2004:
O ÚLTIMO POEMA
Assim eu quereria o meu
último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais.
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas.
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume.
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos.
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
( Manuel Bandeira - Manuel
Carneiro de Souza Bandeira Filho
- 1886/1968 )
30/Agosto/2004:
LIVRO DE LEITURA
O mais singular livro dos
livros
É o Livro do Amor;
Li-o com toda a atenção:
Poucas folhas de alegrias,
De dores cadernos inteiros.
Apartamento faz uma seção.
Reencontro ! um breve capítulo,
Fragmentário. Volumes de mágoas
Alongados de comentários,
Infinitos, sem medida.
Ó Nisami ! - mas no fim
Achaste o justo caminho;
O insolúvel, quem o resolve ?
Os amantes que tornam a encontrar-se.
( Goethe - Johann
Wolfgang von Goethe - 1749/1832
)
31/Agosto/2004:
TRISTEZAS DA LUA
Divaga em maio à
noite a lua preguiçosa;
Como uma bela, entre coxins e devaneios,
Que afaga com a mão discreta e vaporosa,
Antes de adormecer, o contorno dos seios.
No dorso de cetim das tenras avalanchas,
Morrendo, ela se entrega a longos estertores,
E os olhos vai pousando sobre a níveas manchas
Que no azul desabrocham como estranhas flores.
Se às vezes neste globo,
ébria de ócio e prazer,
Deixa ela uma furtiva lágrima escorrer
Um poeta caridoso, ao sono pouco afeito,
No côncavo das mãos
torna essa gota rala,
De irisados reflexos como um grão de opala,
E bem longo do sol a acolhe no peito.
( Baudelaire - Charles
Baudelaire - 1821/1867 )