02/Abril/2004:
O POETA OPERÁRIO
Grita-se ao poeta:
'Queria te ver numa fábrica!
O que? versos? Pura bobagem!
Para trabalhar não tens coragem'.
Talvez
ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
Eu sou uma fábrica.
E se chaminés
me faltam
talvez
sem chaminés
seja preciso
ainda mais coragem.
Sei.
Frases vazias não agradam.
Quando serrais madeira
é para fazer lenha.
E nós que somos
senão entalhadores a esculpir
a tora da cabeça humana?
Certamente que a pesca
é coisa respeitável.
Atira-se a rede e quem sabe?
Pega-se um esturjão!
Mas o trabalho do poeta
é muito mais difícil.
Pescamos gente viva e não peixes.
Penoso é trabalhar nos
altos-fornos
onde se tempera o ferro em brasa.
Mas pode alguém
acusar-nos de ociosos?
Nós polimos as almas
com a lixa do verso.
Quem vale mais:
o poeta ou o técnico
que produz comodidades?
Ambos!
Os corações também
são motores.
A alma é poderosa força motriz.
Somos iguais.
Camaradas dentro da massa operária.
Proletários do corpo e do espírito.
Somente unidos,
somente juntos, remoçaremos o mundo,
fá-lo-emos marchar num ritmo célere.
Diante da vaga de palavras
levantemos um clique!
Mãos à obra!
O trabalho é vivo e novo!
Com os oradores vazios, fora!
Moinho com eles!
Com a água de seus discursos
que façam mover-se a mó!
( Maiacovski - Soc.
Poetas Mortos - 1893/1930 )
Tradução: E. Carrera Guerra
05/Abril/2004:
DESENCANTO
Eu faço versos
como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia
ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia
rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
- Eu faço versos como
quem morre.
( Manuel Bandeira - Soc.
Poetas Mortos - 1886/1968 )
06/Abril/2004:
A FLOR E A FONTE
Deixa-me, fonte! 'Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria
Cantava, levando a flor.
'Deixa-me, deixa-me, fonte!'
Dizia a flor a chorar:
'Eu fui nascida no monte...
'Não me leves para o mar.'
E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
'Ai, balanços do meu
galho,
'Balanços do berço meu;
'Ai, claras gotas de orvalho
'Caídas do azul do céu!...'
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.
'Adeus, sombra das ramadas,
'Cantigas do rouxinol;
'Ai, festa das madrugadas,
'Doçuras do pôr-do-sol;
'Carícias das brisas
leves
'Que abrem rasgões de luar...
'Fonte, fonte, não me leves,
'Não me leves para o mar!'
*
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...
( Vicente de Carvalho - O
Poeta de Santos - 1866/1924 )
07/Abril/2004:
RIQUEZA
Tenho a fortuna fiel
e a fortuna perdida.
Uma assim como a rosa,
a outra assim como espinho.
Não me prejudicou
o roubo que sofri.
Tenho a fortuna fiel
e a fortuna perdida.
E estou rica de púrpura
e de melancolia.
Como é amada a rosa,
como é amante o espinho!
Tal num duplo contorno
frutas gêmeas unidas,
tenho a fortuna fiel
e a fortuna perdida.
Dois Anjos
Não é um anjo apenas
que me afeiçoa e guia.
Como embalam as duas
orlas ao mar, embalam-me
o anjo que traz o gozo
e o que traz a agonia;
o que tem asas voantes
e o que tem asas fixas.
Eu sei, quando amanhece,
qual vai reger-me o dia,
se o anjo cor de chama,
se o anjo cor de cinza.
E dou-me a eles como
alga às ondas, contrita.
Voaram uma só vez
com asas unidas:
foi o dia do amor,
o da epifania.
Fundiram-se numa asa
as asas inimigas
e apertaram o nó
que junta à morte a vida.
( Gabriela Mistral - Poetisa
Chilena - 1889/1957 )
08/Abril/2004:
O MAU MONGE
(tradução: Jamil Almansur Haddad)
Um convento de antanho
em suas arcarias
Desdobra os painéis da mística verdade
Cujo efeito, aquecendo as entranhas mais pias,
Mal temperava o frio de sua austeridade.
Tempo em que tu, ó Cristo,
em meses florescias!
Mais de um monge dos teus, hoje na obscuridade,
Pondo-se a trabalhar entre as tumbas sombrias
Glorificava a Morte com simplicidade.
- A minha alma é um sepulcro
em que mau cenobita
Por tempo sem início e sem fim anda e habita.
A beleza sumiu deste claustro de abrolhos.
Quando eu irei fazer, ó
monge sempre em férias,
Desta farsa que eu sou, de tão tristes misérias,
Ação para o meu braço e amor para os meus olhos?
( Charles Pierre Baudelaire
- Poeta
Francês - 1821/1867 )
12/Abril/2004:
OS POEMAS
Os poemas são
pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo,
como de um alçapão.
Os poemas vêm, os poemas
vão,
não têm pouso ou porto,
alimentam-se
um instante em cada par de mãos
e partem.
O que eles te dão
é o inesquecível, o maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
( Mario Quintana - Soc.
Poetas Mortos - 1906/1994 )
13/Abril/2004:
NO POUSO
Venho da serra; ao grito
da araponga,
Deixei alegre o rancho dos tropeiros,
Nem sequer prolongavam doces cantos
As graúnas no topo dos coqueiros.
As brisas suspiravam manso e
manso,
Franjando as águas de cristal do rio;
As sericoras s'encolhiam trêmulas
Das névoas matinais a um beijo frio.
Era tudo esplendor; junto às
cabanas
Entornavam perfume as granadilhas,
As guabirobas sacudiam flores
Correndo as virações nas longas trilhas.
Porém, patrício,
meu peito
Era uma veiga sem flor,
Um lírio sem ter orvalhos,
Aurora sem ter fulgor;
Minha serrana indolente
Como as auroras do sertão,
Chora, de mim tão distante,
Distante não vive, não.
Tenho saudade, patrício,
Desse meu anjo do lar,
Mas, a tarde vai tão longe...
Eu venho aqui sestear,
Nesta viola que as mágoas
Sabe tristonha carpir,
Quero tocar meu fandango,
Quero a tirana ferir.
Toca, toca na viola,
Corram versos à porfia,
Sapateia minha gente
Que eu parto ao romper do dia!
Minha serrana, se dormes
Como a coerana ao luar,
Não te despertem do sono
As trovas do meu trovar...
- De lá das bandas do
vale
Soa a canção do vaqueiro,
Passa a brisa, leva os sonhos,
Leva os cantos do tropeiro.
Leva os cantos do tropeiro
Leva o perfume das flores
Todos têm sorrisos d'alma
Todos têm os seus amores.
Todos têm os seus amores,
Todos têm su'afeição;
Como a tarde que descora
'Stá triste o meu coração.
'Stá triste o meu coração...
- Loura flor da sapucaia,
Junto d'haste ela tem vida,
Solta ao vento, ela desmaia.
Solta ao vento, ela desmaia
Como a bonina da serra,
Vou deixar-vos, meus patrícios,
Vou viver na minha terra.
Vou viver na minha terra
Que fica n'outro sertão,
Minha serrana me espera,
Não posso cantar mais, não.
A densa nuvem de tucanos bravos
Segue às matas opostas à colina,
Pende o cálix a flor aos lumes tredos
Que entorna a grande estrela peregrina.
No taquaral deserto, da palmeira
Ouviu-se ao longe um treno de magia:
Era o canto suave e dolorido,
Da viuvinha ao desmaiar do dia.
Morria a tarde; o sol já
descambava
Quebrando os raios na extensão dos mares,
E Deus co'a destra onipotente, augusta,
Erguia a lua na amplidão dos ares.
( Melo Morais Filho - Soc.
Poetas Mortos - 1844/1919 )
14/Abril/2004:
DEIXOU GRAVADO...
Deixou gravado
Nos olhos um fulgor de fogo
Que consome num instante
Estrela incandescente
Desaparece no espaço.
( Mitsuko Kawai - Memorial
do Imigrante - 1921/**** )
15/Abril/2004:
POEMA BARROCO
Os cavalos da aurora
derrubando pianos
Avançam furiosamente pelas portas da noite.
Dormem na penumbra antigos santos com os pés feridos,
Dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes.
O poeta calça nuvens
ornadas de cabeças gregas
E ajoelha-se ante a imagem de Nossa Senhora das vitórias
Enquanto os primeiros ruídos de carrocinhas de leiteiros
Atravessam o céu de açucenas e bronze.
Preciso conhecer o meu sistema
de artérias
E saber até que ponto me sinto limitado
Pelos sonhos a galope, pelas últimas notícias de massacres,
Pelo caminhar das constelações, pela coreografia dos
pássaros,
Pelo labirinto da esperança, pela respiração
das plantas,
E pelos vagidos da criança recém-parida na maternidade.
Preciso conhecer os porões
da minha miséria,
Tocar fogo nas ervas que crescem pelo corpo acima,
Ameaçando tapar meus olhos, meus ouvidos,
E amordaçar a indefesa e nua castidade.
É então que viro a bela imagem azul-vermelha:
Apresentando-me o outro lado coberto de punhais,
Nossa Senhora das Derrotas, coroada de goivos,
Aponta seu coração e também pede auxílio.
( Murilo Mendes - Biografia
- 1901/1975 )
16/Abril/2004:
EPITÁFIO PARA
UM POETA
(tradução: José Weis)
Quis cantar, cantar
para não lembrar
sua vida verdadeira de mentiras
e recordar
sua mentirosa vida de verdades.
( Octavio Paz - Soc.
Poetas Mortos - 1914/1998 )
19/Abril/2004:
INICIAÇÃO
Se vens a uma terra estranha
curva-te.
Se este lugar é esquisito
curva-te.
Se o dia é todo estranheza
submete-se.
- és infinitamente mais estranho.
( Orides Fontela - Soc.
Poetas Mortos - 1940/1998 )
20/Abril/2004:
O SEGREDO DAS AURORAS
Se eu tivesse
O segredo das Auroras,
Acenderia cada semente
Como o Amor multiplica
A Esperança dentro da noite.
( Oscar Bertholdo - Soc.
Poetas Mortos - 1935/1991 )
22/Abril/2004:
O DOM DA VIDA
'E disse Deus em seguida:
façamos o homem à nossa imagem e semelhança (...).
E criou Deus o homem à sua imagem (...)
e criou-os macho e fêmea (Gênesis, I: 26,27).'
Existimos!
A vida é o maior bem colocado em nós pelo Sopro Divino
que anela pela nossa felicidade.
Pensamos, queremos, realizamos e nos conduzimos diante da Eternidade,
navegando nas águas infindas do éter cósmico,
segundo as normas imutáveis que nos impelem para o melhor,
sugerindo-nos, a cada instante, o belo: a perfeição.
Nada seríamos - como
nada somos - sem Aquele que nos dirige os destinos pelos passos empreendidos
por nós mesmos.
Viver é posicionar-se na rota das provas e das expiações,
acumulando experiências e burilando o Espírito, fortalecendo
os laços de amor e construindo elos de fraternidade, adquirindo
responsabilidades e abrindo espaço para a maioridade espiritual.
O Espírito, sim, este
tem vida imortal! Mas para tornar-se apto ao exercício da cidadania
na Pátria Espiritual, imprescindível é vivenciar
e adquirir virtudes, desfazendo-se dos vícios e das imperfeições
que caracterizam os primitivos albores da consciência.
Valorizar a vida é dever de todos nós; é coerência
e sabedoria.
( Dr. Francisco Cajazeiras - Bioética
- EME )
23/Abril/2004:
SONETO DE AMOR
Talvez não ser
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando o meio-dia
como uma flor azul, sem que caminhes
mais tarde pela névoa e os ladrilhos,
sem essa luz que levas na mão
que talvez outros não verão dourada,
que talvez ninguém soube que crescia
como a origem rubra da rosa,
sem que sejas, enfim, sem que viesses
brusca, incitante, conhecer minha vida,
aragem de roseira, trigo do vento,
e desde então sou porque tu és,
e desde então és, sou e somos
e por amor serei, serás, seremos.
( Pablo Neruda - Neftalí
Ricardo Reyes Basoalto - 1904/1973
)
26/Abril/2004:
BOA JUSTIÇA
É a quente lei
dos homens:
Da uva eles fazem vinho,
E do carvão fazem fogo,
E dos beijos fazem homens.
É a dura lei dos homens:
Guardar-se intacto, apesar
Das Guerras e da miséria,
Tantos perigos de morte.
É a doce lei dos homens:
Transformar a água em luz,
O sonho em realidade,
Inimigos em irmãos.
Uma lei antiga e nova
Que se vai aperfeiçoando
Do coração da criança
Até a razão suprema.
( Paul Éluard - Soc.
Poetas Mortos - 1895/1952 )
tradução: José Paulo Paes
27/Abril/2004:
NA PENUMBRA
Raiava, ao longe, em
fogo a lua nova,
Lembras-te?... apenas reluzia a medo,
Na escuridão crepuscular da alcova
O diamante que ardia-te no dedo...
Nesse ambiente tépido,
enervante,
Os meus desejos quentes, irritados,
Circulavam-te a carne palpitante,
Como um bando de lobos esfaimados...
Como que estava sobre nós
suspensa
A pomba da volúpia; a treva densa
Do teu olhar tinha tamanho brilho!
E os teus seios que as roupas comprimiam,
Tanto sob elas, túmidos, batiam,
Que estalavam-te o flácido espartilho!
( Raimundo Correia - Mundo
Cultural - 1860/1911 )
28/Abril/2004:
A MORTE DO POETA
Jazia. A sua face, antes
intensa,
pálida negação no leito frio,
desde que o mundo, e tudo o que é presença,
dos seus sentidos já vazio,
se recolheu à Era da Indiferença.
Ninguém jamais podia
ter suposto
que ele e tudo estivessem conjugados
e que tudo, essas sombras, esses prados,
essa água mesma eram o seu rosto.
Sim, seu rosto era tudo o que
quisesse
e que ainda agora o cerca e o procura;
a máscara da vida que perece
é mole e aberta como a carnadura
de um fruto que no ar, lento, apodrece.
( Rainer Maria Rilke - Soc.
Poetas Mortos - 1875/1926 )
Tradução: Augusto de Campos
29/Abril/2004:
ARTISTA
Por um destino do teu
Ser,
Tens que buscar nas cousas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.
Sempre o achas, mas ao tê-lo
em teu poder
Nem o pões na tua alma, nem o sentes
Na tua vida, e o levas, sem saber,
Ao sonho de outras almas diferentes...
Vives humilde e inda ao morrer
ignoras
O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix inocente:
Fia na primavera, entre as amoras,
A tua seda de ouro, que nem usas
Mas que faz tanto bem a tanta gente...
( Raul de Leoni - Soc.
Poetas Mortos - 1895/1926 )
30/Abril/2004:
MINHA OSTENTAÇÃO
INÚTIL
Minha ostentação
inútil
Esbofeteia o poeta, ou seja-lá-o-que-sou
Não estou morrendo
Só estou lá...
sendo
Cada vez que abro os olhos
Sei que devo pular dos lençóis para ser.
Ser
Forte como um forte é.
Essa jaula que sou
Jaula que guarda dois outros que são.
Ele: o leão faminto e...
O astronauta vagabundo do cosmo.
Enquanto preso, sonho domingos
lácteos
O leão ruge alto interrompendo...
interrompendo... me acordando
pra seu sonho-selvoso
E a jaula se mexe
Se remexe
Se terremota com a possibilidade de ruir!
Dar-fuga-a-um-de-nós.
A: eu-do-que-sigo-estradas...
estradas que existem ou não!
Ou
AO: leão da terra!
Enquanto...
A lua agora me assovia um psiu-psiu-psiu
Do leão que está em mim pouco sei
Está lá! Mas... a lua me chama!.
( Raul Seixas - Soc.
Poetas Mortos - 1945/1989 )