01/Agosto/2006:
GUIA-ME SÓ A
RAZÃO
- Cancioneiro - xxx -
Guia-me a só a razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão ?
Só ela me alumia.
Tivesse quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.
Deu-me olhos para ver.
Olho, vejo, acredito.
Como ousarei dizer:
<<Cego, fora eu bendito >> ?
Como olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão-
Olhar de conhecer.
Se ver é enganar-me,
Pensar um descaminho,
Não sei. Deus os quis dar-me
Por verdade e caminho.
( Fernando Pessoa - 'Biografia'
- 1936/**** )
02/Agosto/2006:
A RUA DOS CATAVENTOS
- Soneto III - VI -
Na minha rua há um
menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.
Ouve também o carpinteiro,
em frente,
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola. . .
Mas nesta rua há um operário
triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.
Ele trabalha silenciosamente.
. .
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente. . .
( Mario Quintana - 'Biografia'
- 1906/1994 )
03/Agosto/2006:
A RUA DOS CATAVENTOS
- Soneto IV - IX - Para Emílio
Kemp -
É a mesma a ruazinha
sossegada.
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!
Mas parece que a luz está
cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...
Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...
Pobres cartazes por aí
afora
Que inda anunciam: - Alegrias - Risos
Depois do Circo já ter ido embora!...
( Mario Quintana - 'Biografia'
- 1906/1994 )
04/Agosto/2006:
A RUA
- livro Um Dia Depois do Outro - 1944/1946/1947
-
Bem sei que, muitas vezes,
o único remédio
é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
a dívida, o divertimento,
o pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
de contínuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não,
apenas,
esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.
A esperança
nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da
espera.
Nunca é a figura de mulher
do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
( Cassiano Ricardo - 'Biografia'
- 1895/1974 )
07/Agosto/2006:
SONHADOR
- xxx -
Eu sou um sonhador, apaixonado,
mendigo alheio da felicidade.
Meu coração deveras traspassado,
parece não sentir a mocidade.
Quando alguém me pergunta: FOSTE AMADO?
Eu lhe respondo com sinceridade:
Eu sou um sonhador, apaixonado,
mendigo alheio da felicidade.
Eu já busquei amor entre os amores
e caminhei hostil, sofrendo dores,
perdido na miséria e corrução.
( Mario Ribeiro Martins - 'Biografia'
- 1943/**** )
08/Agosto/2006:
AS SEIS CORDAS
- xxx -
A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que bóiam no seu negro
abismo de madeira.
( Federico Garcia Lorca - 'Biografia'
- 1898/1936 )
09/Agosto/2006:
SONETO
- Parnaso de Além-Túmulo
- 1932 -
Quisera crer, na Terra, que existisse
Esta vida que agora estou vivendo,
E nunca encontraria abismo horrendo,
De amargoso penar que se me abrisse.
Andei cego, porém, e sem
que visse
Meu próprio bem na dor que ia sofrendo;
Desvairado, ao sepulcro fui descendo,
Sem que a Paz almejada conseguisse.
Da morte a Paz busquei, como se fora
Apossar-me do eterno esquecimento,
Ao viver da minh'alma sofredora;
E em vez de imperturbáveis
quietitudes,
Encontrei os Remorsos e o Tormento,
Recrudescendo as minhas dores rudes.
Antero de Quental: nascido
na ilha de São Miguel, nos Açores, em 1842, e desencarnado
por suicídio, em 1891. É vulto eminente e destacada nas
letras portuguesas, caracterizando-se pelo seu espírito filosófico.
( Antero de Quental / Chico
Xavier - 'Biografia'
- 1842/1891 )
10/Agosto/2006:
O CANTO DO GUERREIRO
- Primeiros Cantos - 1846 -
I
Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
Ouvi-me, Guerreiros,
Ouvi meu cantar.
II
Valente na guerra,
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
Guerreiros, ouvi-me;
Quem há, como eu sou?
III
Quem guia nos ares
A frecha emplumada,
Ferindo uma presa,
Com tanta certeza,
Na altura arrojada
onde eu a mandar?
Guerreiros, ouvi-me,
Ouvi meu cantar.
IV
Quem tantos imigos
Em guerras preou?
Quem canta seus feitos
Com mais energia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
Guerreiros, ouvi-me:
Quem há, como eu sou?
V
Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.
Quem há mais valente,
Mais destro que eu?
VI
Se as matas estrujo
Coos sons do Boré,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
Quem é mais valente,
Mais forte quem é?
VII
Lá vão pelas matas;
Não fazem ruído:
O vento gemendo
E as matas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
São eles guerreiros,
Que faço avançar.
VIII
E o Piaga se ruge
No seu Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.
IX
E então se de novo
Eu toco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
Guerreiros, dizei-me,
Tão forte quem é?
( Gonçalves Dias - 'Biografia'
- 1823/1864 )
11/Agosto/2006:
LIRA XXXVI
- xxx - xx -
Meu sonoro passarinho,
se sabes do meu tormento,
e buscas dar-me, cantando,
um doce contentamento,
Ah! não cantes mais, não cantes,
se me queres ser propício;
eu te dou em que me faças
muito maior benefício.
Ergue o corpo, os ares rompe,
procura a Porto da Estrela,
sobe à serra e, se cansares,
descansa num tronco dela.
Toma de Minas a estrada,
Na Igreja Nova, que fica
ao direito lado, e segue
sempre firme a Vila Rica.
Entra nesta grande terra,
passa uma formosa ponte,
passa a segunda; a terceira
tem um palácio defronte.
Ele tem ao pé da porta
uma rasgada janela:
é da sala, aonde assiste
a minha Marília bela.
Para bem a conheceres,
eu te dou os sinais todos
do seu gesto, do seu talhe,
das suas feições e modos.
O seu semblante é redondo,
sobrancelhas arqueadas,
negros e finos cabelos,
carnes de neve formadas.
A boca risonha e breve,
suas faces cor-de-rosa,
numa palavra, a que vires
entre todas mais formosas.
Chega então ao seu ouvido,
dize que sou quem te mando,
que vivo nesta masmorra,
mas sem alívio penado.
( Tomás Antônio
Gonzaga - 'O
Poeta da Inconfidência' -
1744/1810 )
14/Agosto/2006:
NUDEZ
- Antologia Poética - 1982 -
Não cantarei amores
que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é
o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.
Ou sabe? Algo de nós acaso
se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.
Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte ?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.
Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.
Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos,
um calar de serenos
desidratados sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve .
( Carlos Drummond de Andrade
- 'Biografia'
- 1902/1987 )
15/Agosto/2006:
A OUTRA MARGEM
- Fortaleza- 1994 -
Um osso
um pau
uma pedra
uma lâmina
o disparador de fogo
deviam estar ao acaso
e o acaso
e ao acaso
uma dor de cabeça
uma rápida desconexão neural
Gustavo
21 anos
menino bom
bem comportado
responderá perguntas insólitas
e ter-se-á mudado
inexorável
para o outro lado
e um tiro
mais um tiro
e outros tiros
ribombarão
em teu silêncio.
A besta
sob a Besta:
o pai
a mãe
a irmã
a avó
o avô
tombaram
tombaram todos
tombamos nós também
aos tiros do jovem Gustavo:
Ao mergulho no Lethes
esverdeado
em gosma
turvo ao cálice
à insulsa margem:
Não,
não sei
não lembro,
não é verdade,
hoje mesmo
eles virão-me visitar.
Althusser,
alfa, beta, gama, delta
e as facas...
Pound
e outros habitantes do outro
... ... ...
alter
te farão companhia
e as balas...
neste outro lado
e os gritos...
existencial
e as pedras...
do drama
mais um drama
visceralmente ligado, o drama
à queda
expulsão do vale
daqueles quatro rios
definitivamente perdido o vale:
hoje
de lágrimas
tragi, tragi-drama
réquiem
Condição Humana
em ré menor.
Voltar...
voltar desse rio?!
... e desse rio tem volta ?
Cesse
calem-se
cesse tudo
infinitamente tudo
calem-se todos:
Eis,
Ecce Homo,
Agnus Dei
qui tollit peccata Mundi.
Vem, meu irmão,
tu és um de nós;
o medo é uma loucura breve,
nem todos sabem o que fazem.
Também é certo:
se não sabemos,
mesmo assim,
poderíamos
ter feito
um pouquinho
mais
e
melhor.
Tarde.
Notas para A Outra Margem:
01. Gustavo, Brasil, São Paulo: tragédia, um jovem de
bom comportamento assassina a tiros os pais e a irmã, dirige
cem quilômetros até a casa dos avós; conta a estes
o ocorrido e os elimina também a tiros. Foi declarado insano.
02. um osso, um pau: redução
temporal, pois o fato, apesar de absurdo, tem-se repetido ao longo da
história do ser humano desde os tempos.
03. Lethes: um dos rios do Inferno,
na mitologia grega: quem bebesse de sua água padeceria do esquecimento
eterno. Coerentemente com o Lethes, as vítimas do distúrbio
de que foi acometido o jovem Gustavo, na maioria das vezes, demonstram
absoluto esquecimento da tragédia e permanecem a espera dos pais
por todo o tempo.
04. insulsa margem: carcaça
insulsa, in spleen III, Charles Baudelaire, Flores do Mal
.
05. Althusser: filósofo,
séc. XX, estrangulou a companheira em momento de insanidade.
06. Pound: Ezra Pound, poeta note-americano,
crime de alta traição à pátria, apoio ao
nazi-facismo; considerado insano, foi internado no hospital Santa Elisabeth,
USA, quase até os últimos dias de vida.
07. Quatro rios: Pisom, Geom, Tigre
e Eufrates, os rios do Paraíso, Gênesis. 02:11/14.
08. réquiem em ré
menor: Amadeus Wolfgang Mozart.
09. em meu irmão: gesto do
irmão sobrevivente, Adriano perante a insanidade de Gustavo.
10. O medo é uma loucura
breve: frase final de um artigo do psicanalista e escritor Jurandir
Freire Costa, Brasil, publicado no jornal Folha de São Paulo,
13.11.94, caderno Mais!.
11. Tarde: logo após chegar
da Missa de 7º Dia, da genitora, Anísia.
( Francisco José Soares
Feitosa - 'Biografia'
- 1944/**** )
16/Agosto/2006:
AS ANDORINHAS DE ANTÔNIO
NOBRE
- Os Sobreviventes- 1971 -
Nos
fios
ten
sos
da
pauta
de me-
tal
as
an/
do/
ri/
nhas
gri-
tam
por
fal/
ta/
de u-
ma
cl'a-
ve
de
sol.
( Cassiano Ricardo - 'Biografia'
- 1895/1974 )
17/Agosto/2006:
DOIS CÂNTICOS
E UMA CANÇÃO
- Antologia Poética- 1963 -
Cântico II
Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabes que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade.
És tu
Canção Mínima
No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta
Cântico VI
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acaba todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
( Cecília Meireles -
'Biografia'
- 1901/1964 )
18/Agosto/2006:
NO MONTE
- Cachoeira de Paulo Afonso- 1870 -
Parei... Volvi em torno
os olhos assombrados...
Ninguém! A solidão pejava os descampados...
Restava inda um segundo... um só pra me salvar;
Então reuni as forças, ao céu ergui o olhar...
E do peito arranquei um pavoroso grito,
Que foi bater em cheio às portas do infinito!
Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte em
monte
Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte!...
Depois a solidão ainda mais calada
Na mortalha envolveu a serra descampada!...
Ai! que pode fazer a rola
triste
Se o gavião nas garras a espedaça?
Ai! que faz o cabrito do deserto,
Quando a jibóia no potente aperto
Em roscas férreas o seu corpo enlaça?
Fazem como eu?... Resistem, batem, lutam,
E finalmente expiram de tortura.
Ou, se escapam trementes, arquejantes,
Vão, lambendo as feridas gotejantes,
Morrer à sombra da floresta escura!...
E agora está concluída
Minha história desgraçada.
Quando caí era virgem!
Quando ergui-me desonrada!
( Castro Alves - 'Biografia'
- 1847/1871 )
21/Agosto/2006:
AS CISMAS DO DESTINO
- EU- 1912 -
I
Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Na austera abóbada alta
o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.
Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte.
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Tal uma horda feroz de cães
famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!
Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.
E aprofundando o raciocínio
obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.
Livres de microscópios
e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Bilhões de centrossomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.
Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!
Mostravam-me o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!
A corrente atmosférica
mais forte
Zunia. E, na ígnea crostra do Cruzeiro,
Julgava eu ver o fúnebre candeeiro
Que há de me alumiar na hora da morte.
Ninguém compreendia o meu
soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.
A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.
Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!
Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.
É bem possível que
eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!
Essa obsessão cromática
me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.
Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.
Na ascensão barométrica
da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh´alma!
E o cuspo que essa hereditária
tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.
Não! Não era o meu
cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!
Era antes uma tosse ubíqua,
estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!
E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!
Na alta alucinação
de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de uma artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.
Chegou-me o estado máximo
da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!
Cuspo, cujas caudais meus beiços
regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!
Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!
Porque, se no orbe oval que os
meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!
II
Foi no horror dessa noite tão
funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!
Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!
Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.
Nessa hora de monólogos
sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os açoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.
Perpetravam-se os atos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia,
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.
Ninguém, decerto, estava
ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!
Em tudo, então, meus olhos
distinguiram
Da miniatura singular de uma aspa,
À anatomia mínima da caspa,
Embriões de mundos que não progrediram!
Pois quem não vê
aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!
Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no laringe,
Escapando-se apenas em latidos!
Despir a putrescível forma
tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!
A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!
Surpreendo-a em quatrilhões
de corpos vivos,
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos
A contração dos gritos instintivos!
Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes
Como bolhas febris de água, fervendo!
Nessa época que os sábios
não ensinam,
A pedra dura, os montes argilosos
Criariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!
Almas pigméias! Deus subjuga-as,
cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopéias carolíngias!
Era a revolta trágica dos
tipos
Ontogênicos mais elementares,
Desde os foraminíferos dos mares
À grei liliputiana dos polipos.
Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Buda,
Pareciam pedir com a boca muda
A ganglionária célula intermédia.
A planta que a canícula
ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!
Os protistas e o obscuro acervo
rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!
E apesar de já ser assim
tão tarde,
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita,
No meu temperamento de covarde!
Mas, refletindo, a sós,
sobre o meu caso,
Vi que, igual a um amniota subterrâneo,
Jazia atravessada no meu crânio
A intercessão fatídica do atraso!
A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!
Nas agonias do delirium-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!
Enterravam as mãos dentro
das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.
Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.
Fabricavam destarte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espetáculo
De uma progênie idiota de palermas.
Prostituição ou
outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!
Por que há de haver aqui
tantos enterros?
Lá no "Engenho" também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!
Quantas moças que o túmulo
reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos espojando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama.
Morte, ponto final da última
cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!
Diante de ti, nas catedrais mais
ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!
E eu desejava ter, numa ânsia
rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!
Era um sonho ladrão de
submergir-me
Na vida universal, e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstrata do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!
Nisto, pior que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O eco particular do meu Destino:
III
"Homem! por mais que a Idéia
desintegres,
Nessas perquirições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
Em vão, com a bronca enxada
árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.
Negro e sem fim é esse
em que te mergulhas
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!
Porque, para que a Dor perscrutes,
fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!
A universal complexidade é
que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!
Ah! Como o ar imortal a Dor não
finda!
Das papilas nervosas que há nos tatos
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!
Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada idéia
Dás ao sôfrego estudo da ninféia
E de outras plantas dicotiledôneas!
A diáfana água alvíssima
e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;
As rebeladas cóleras que
rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem;
O orbe feraz que bastos tojos
acres
Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira concreta dos massacres;
Os sanguinolentíssimos
chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;
O Amor e a Fome, a fera ultriz
que o fojo
Entra, à espera que a mansa vítima o entre,
- Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;
As pálpebras inchadas na
vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;
O trem particular que um corpo
arrasta
Sinistramente pela via férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;
A água arbitrária
que hiulcos caules grossos
Carrega e come, as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopeias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;
As projeções flamívomas
que ofuscam,
Como uma pincelada rembradtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;
O antagonismo de Tifon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira meteórica do arco-íris;
Os terremotos que, abalando os
solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;
O instinto de procriar, a ânsia
legítima
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;
As diferenciações
que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos 10 minutos de um acesso de asma;
E, (conquanto contra isto ódios
regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
À morte desgraçada dos açougues...
Tudo isto que o terráqueo
abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!
Por descobrir tudo isso, embalde
cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!
Poeta, feto malsão, criado
com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;
Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventos geradores!
O áspero mal que a tudo,
em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno
Ao sangue dos mamíferos vorazes!
Ah! Por mais que, com o espírito,
trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!
O Espaço - esta abstração
spenceriana
Que abrange as relações de coexistência
E só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!
As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham
São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.
Em vão, com a mão
corrupta, outro éter pedes
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges,
Também prova o princípio de Arquimedes!
A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!
Nem terás no trabalho que
tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!
Quando chegar depois a hora tranqüila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!
Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
E a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!
Adeus! Fica-te aí, com
o abdômen largo
A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!"
IV
Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o rei Lear, no meio da floresta!
Maldizia, com apóstrofes
veementes,
No estentor de mil línguas insurretas,
O convencionalismo das Pandetas
E os textos maus dos códigos recentes!
Minha imaginação
atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.
Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sustenidos de uma endecha
Vinha-me às cordas glóticas a queixa
Das coletividades sofredoras.
O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!
O Estado, a Associação,
os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.
Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psiquê no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!
Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as àrvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!
( Augusto dos Anjos - 'Biografia'
- 1884/1914 )
22/Agosto/2006:
PAU-DE-ARARA
- xx- xxxx -
Eu um dia cansado que tava
da fome que eu tinha
eu não tinha nada
que fome que eu tinha,
que seca danada no meu Ceará.
Eu peguei e juntei
um restinho de coisas que eu tinha:
duas calças velhas e uma violinha
e num pau-de-arara toquei para cá.
E de noite eu ficava na praia
de Copacabana
zanzando na praia de Copacabana
dançando o chachado pras moças olhá.
Virgem Santa
que a fome era tanta
que nem voz eu tinha
Meu Deus quanta moça
que fome que eu tinha
mais fome que tinha no meu Ceará.
Puxa vida que num tinha uma vida
pior do que a minha
que vida danada,
que fome que eu tinha
zanzando na praia pra lá e pra cá.
Quando eu via toda aquela gente
no come que come
eu juro que eu tinha saudades da fome
da fome que eu tinha no meu Ceará.
E ai eu pegava e cantava
e dançava o xaxado
e só conseguia porque no xaxado
a gente só pode mesmo se arrastá.
Virgem Santa
que a fome era tanta
quinté parecia
que mesmo xaxado
meu corpo subia
igual se tivesse querido voar.
Vou-me embora pro meu Ceará
porque lá tenho um nome
aqui não sou nada
sou só Zé com fome
sou só Pau-de-Arara
nem sei mais cantá.
Vou picar minha mula
vou antes que tudo rebente
porque estou achando
que o tempo está quente
pior do que antes não pode ficar.
( Ary Toledo, de Vinicius de
Moraes e Carlos Lyra - 'Biografia'
- 1937/**** )
23/Agosto/2006:
POETAS
- Trocando Olhares- 1916 -
Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.
Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!
Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas.
E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também!
( Florbela Espanca - 'Biografia'
- 1894/1930 )
24/Agosto/2006:
APAGAR-ME
- xxx- xxx -
Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.
( Paulo Leminski - 'Biografia'
- 1944/1989 )
25/Agosto/2006:
AFINAL
- Poesias de Álvaro de Campos - Fernando Pessoa- xx -
Afinal, a melhor maneira
de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.
Quanto mais eu sinta, quanto mais
eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.
Cada alma é uma escada
para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
Sursum corda! Erguei as almas!
Toda a Matéria é Espírito,
Porque Matéria e Espírito
são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam
Com uma tristeza nobre para os
meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,
Escuto-o, e no meu coração
um grande pasmo soluça.
Sursum corda! ó Terra,
jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
A tua própria vontade transformadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!
Sursum corda! Reparo para ti e
todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima
Volteia serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,
Sou um monte confuso de forças
cheias de infinito
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu
corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.
Tudo o que há dentro de
mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não está em cima nem
embaixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.
Sou uma chama ascendendo, mas
ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.
Sou uma grande máquina
movida por grandes correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos
sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte ...
Meu corpo é um centro dum
volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
Que se interpenetram e misturam, porque isto não é no
espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.
Dentro de mim estão presos
e atados ao chão
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,
A chuva com pedras atiradas de
catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.
Sou um formidável dinamismo
obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!
( Álvaro de Campos /
Fernando Pessoa - 'Biografia'
- 1888/1935 )
28/Agosto/2006:
AOS LEITORES AMIGOS
- xx- xx -
Poetas não podem
calar-se,
Querem às turbas mostrar-se.
Há de haver louvores, censuras!
Quem vai confessar-se em prosa?
Mas abrimo-nos sob rosa
No calmo bosque das musas.
Quanto errei, quanto vivi,
Quanto aspirei e sofri,
Só flores num ramo aí estão;
E a velhice e a juventude,
E o erro e a virtude
Ficam bem numa canção.
( Johann Wofgang von Goethe
- 'Biografia'
- 1749/1832 )
29/Agosto/2006:
FIO
- xx- xx -
No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.
Tu não vês o jogo
perdendo-se
como as palavras de uma canção.
Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...
Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?
( Cecília Meireles -
'Biografia'
- 1901/1964 )
30/Agosto/2006:
CANÇÃO
DE BARCO E DE OLVIDO
- Para Augusto Meyer- xx -
Não quero a negra
desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.
( Mario Quintana - 'Biografia'
- 1906/1994 )
31/Agosto/2006:
A MUSA ENFERMA
- tradução: Jamil Almansur Haddad- xx -
Ah, minha pobre musa, o que tens esta vez?
Teus olhos ocos são todos visões noturnas
E alternativamente refletes na tez
Loucura com horror, as sombras taciturnas.
Sobre ti, róseos duende
e súcubo esverdeado
Derramam o medo e o amor de suas urnas?
O pesadelo, o punho despótico e irado,
Afogou-te no fundo de incerto Minturnas?
Quisera que, exalando o aroma
da saúde,
Fosse teu seio só a força e a juventude,
Que o teu sangue cristão fosse fluxos marítimos
Como o inúmero som destes
antigos ritmos
Em que alternam seu reino o inventor da cantiga
Febo e o divino Pã, o senhor da áurea espiga.
( Charles Baudelaire - 'Biografia'
- 1821/1867 )